Sua voz era pequena, sua dicção nervosa, de timbre peculiar. Mas a personalidade, sabe-se lá o quê, “aquilo que vem de dentro” compensava as pernas finas, a pequena estatura. No palco, aquela mulher se tornava uma atriz como poucas, a grande dama do teatro brasileiro. Em maio de 1969, ao morrer 40 dias após ter sofrido uma isquemia numa cena de Esperando Godot, de Samuel Beckett, foi homenageada por Carlos Drummond de Andrade num poema em que dizia, “a morte emendou a gramática. Morreram Cacilda Becker”. Assim, no plural, marcando a enormidade do seu talento. Revelar a grandeza de um
ser humano, essa pode ser uma das funções de uma biografia, caso
de Cacilda Becker – fúria santa (Geração Editorial, 626 págs., R$ 49), escrita por Luís André do Prado a partir de intensa pesquisa e, principalmente, através da voz de amigos, parentes e contemporâneos
da atriz. Graças à colaboração da família de Cacilda, que cedeu
cartas, desenhos e recortes, abrindo-lhe os segredos, Prado, um experimentado jornalista da área cultural, pôde reconstruir – sem
recorrer à ficção, como é comum – não apenas situações, mas o
que pensava e sentia a atriz naqueles determinados momentos.

Nascida na tranquila Pirassununga, no interior paulista, Cidinha, como logo ficou conhecida, sempre se orgulhou da ascendência germânica da mãe, Alzira Leonor Becker, e da origem italiana e “um pouco grega” – na sua imaginação – do pai, Edmundo Radamés Iaconis. Filha mais velha entre três – havia ainda Dirce, que não seguiu carreira, e a caçula, Cleyde, que adotou Yaconis como sobrenome artístico –, a garota chamava a atenção pela beleza e pelo desembaraço. Já em Santos – para onde a mãe, Alzira, pediu transferência como professora estadual ao ser abandonada pelo marido –, ficou conhecida aos 16 anos por dançar com desembaraço o balé Dança ritual do fogo, de Manuel de Falla. Sua audácia não passou despercebida, já que o figurino usado era um tanto transparente.

Descoberta pelo futuro crítico Miroel Silveira, a “Isadora Duncan de subúrbio”, como chegaram a chamá-la, estreou meio por acaso nos palcos cariocas em 1941, na peça 3.200 metros de altitude, de Julian Luchaire, encenada pelo Teatro do Estudante do Brasil (TEB), de Paschoal Carlos Magno. Sua carreira, que ia de companhia a companhia, tomou impulso assim que estreou no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, seis anos mais tarde. Na década seguinte, já separada
do primeiro marido, Tito Fleury, criou ao lado de Walmor Chagas,
seu companheiro até o fim, a própria companhia, o Teatro Cacilda
Becker (TCB). Apaixonada e apaixonante, Cacilda teve dois filhos,
Luiz Carlos, o Cuca, com Fleury, e Maria Clara, adotada junto com
Chagas após uma das constantes separações do casal.

Um dos méritos do livro de Prado é trazer à luz um momento efervescente do teatro brasileiro, ao mesmo tempo que fala de Cacilda. Mostra como seu aparecimento coincidiu com a renovação da cena teatral, impulsionada pela atuação de diretores estrangeiros, como Adolfo Celi e Zbigniew Ziembinsky, e pelo surgimento de novas estrelas como Tônia Carrero, Maria Della Costa, Sérgio Cardoso, Bibi Ferreira, Sérgio Britto, Lilian Lemmertz, Plínio Marcos, Ruth Escobar e muitos outros. Mas

Cacilda foi também uma atriz cuja existência extrapolou o brilho dos palcos. Presidiu o sindicato dos atores em meio à ditadura e teve uma atuação tão destacada que Caetano Veloso, no célebre discurso feito

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no Tuca paulistano em 1968, durante a música

É proibido proibir

, sob

o pretexto de manifestar sua adesão à classe teatral, bradou um

genérico “E viva Cacilda Becker!” E foi compreendido.


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