Um amplo painel das diversas manifestações artísticas acontecidas no País na primeira metade do século XX foi esplendidamente traçado por meio de 527 obras na exposição que o Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, abriga desde o sábado 30, sob o título Da antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950. A bela mostra é a mesma que esteve em cartaz na Espanha há dois anos, de outubro de 2000 a janeiro de 2001, no Instituto Valenciano de Arte Moderna (Ivam), a convite dos próprios espanhóis, que bancaram toda a produção. Distribuído em dez salas, o conjunto de peças – telas, esculturas, desenhos, fotos, livros, filmes, documentos, roupas, projetos, maquetes – busca captar o processo de implantação do modernismo no Brasil, desde os anos imediatamente anteriores à Semana de Arte Moderna de 1922 até a construção de Brasília, ápice da arquitetura modernista no hemisfério sul. Jorge Schwartz, curador-geral da exposição, adianta que, ao ser idealizada em 1996, a mostra não foi concebida nem para comemorar os 500 anos do Descobrimento nem para marcar os 80 anos da Semana de Arte Moderna. “Esta montagem brasileira é uma grande coincidência. A equipe da Faap viu o catálogo espanhol e resolveu trazer a mostra, que foi conservada na íntegra, com uma ou outra obra substituída.” De qualquer forma, o evento caiu como uma luva na data comemorativa e se revela bem superior a todos os eventos realizados este ano com o mesmo propósito. Sem falar que o catálogo de 638 páginas, impresso na Espanha e editado pela Cosac & Naify, é um daqueles livros de referência imprescindíveis na estante dos interessados no assunto, apesar do preço salgado de R$ 340. Quem o adquirir pelo site da editora paga “apenas” R$ 204.

Professor de literatura hispano-americana da Universidade de São Paulo e estudioso do modernismo e das vanguardas, Schwartz procurou reproduzir o espírito multidisciplinar da Semana de 22, quando o Theatro Municipal de São Paulo abrigou, além de arte
e literatura, apresentações musicais e projetos arquitetônicos. Assim, podem ser vistos lado a lado telas como o Abaporu, de Tarsila do Amaral, obra-chave da antropofagia, a grande atração, já que hoje pertence ao acervo do Malba, de Buenos Aires, e as fotos que o escritor Mário de Andrade fez durante suas viagens de pesquisa ao Nordeste brasileiro. Em monitores de plasma são exibidas sequências do banquete antropofágico do filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, baseado justamente no livro homônimo de Mário. Enquanto isso, alto-falantes executam trechos de músicas de Villa-Lobos e Ernesto Nazareth, entre outros. Outro percurso possível é tentar alinhavar a participação ativa de determinados artistas durante as quatro décadas enfocadas. O polivalente Flávio de Carvalho, um perfeito modernista, pode ser apreciado obviamente como pintor, em Retrato do poeta italiano Ungaretti, de 1941, ilustrador da capa
do livro Cobra Norato, de Raul Bopp, arquiteto e performer-estilista ao inventar o “traje do novo homem dos trópicos”, em 1956 – o
antológico conjunto de saia e blusa, na exposição.

Orquestrar tanta informação se revela tarefa hercúlea. Por isso, Schwartz, que cuidou da seleção de livros e documentos da parte de literatura e das imagens do segmento fotográfico, se rodeou de mais cinco curadores. Annateresa Fabris cuidou de artes plásticas, Carlos A. Ferreira Martins, de arquitetura, e Jean-Claude Bernadet, de cinema. Música ficou a cargo de José Miguel Wisnick, e o inventário da influência de nomes estrangeiros de passagem pelo País – como o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, visto numa foto de 1929 com a cantora americana Josephine Baker, ou o escritor italiano Filippo Tomaso Marinetti, autor do manifesto futurista, flagrado em trajes de luxo numa favela carioca em 1926 – vem com a assinatura de Carlos Augusto Calil. Nada é mostrado de forma estanque, possibilitando aqueles inesperados curtos-circuitos de sentido, os famosos “diálogos entre obras”. Um bom exemplo é perceber o chão de azulejos azuis da tela O sapateiro de Brodósqui (1941), de Cândido Portinari, e mais adiante apreciar os azulejos que o artista fez na mesma época para decorar o prédio do Ministério da Educação e Saúde Pública, projeto de Lúcio Costa, cuja maquete também está em exibição.
  

Para facilitar a vida dos visitantes, optou-se por mostrar as obras em ordem cronológica. “Não poderia ser de outra forma quando se tem seis curadores e um período estudado de 40 anos. Viraria um samba do crioulo doido.” Não é o que acontece. Já na primeira sala, nota-se a clareza de conceitos do curador ao reunir num mesmo ambiente a famosa foto de José Medeiros, Expedição Roncador Xingu,
de 1949; as fotos que Mário de Andrade fez com sua “codaque”; e o desenho antecipatório de Vicente do Rego Monteiro, O antropófago, de 1921, mostrando um índio com um osso na boca. Em ampliação, o  Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade, que parodiava
Hamlet com o dilema “Tupy, or not tupy that’s the question”, ainda revelador da inserção do Brasil no mundo globalizado.