Vestindo um elegante casaco vermelho, a atriz Esther Góes desfila sua imponente silhueta pelo palco do Teatro Sesc Consolação, em São Paulo. Um silêncio profundo, algo entre a surpresa e o assombro, toma conta da platéia. Ninguém precisa ser muito detalhista para ver que Esther está exatamente igual à sua personagem, a pintora paulista Tarsila do Amaral (1886-1973), tal qual vista na tela Auto-retrato (manteau rouge), pintada pela musa do modernismo, em 1923. Passada a primeira visão de Tarsila, peça de Maria Adelaide Amaral, dirigida por Sérgio Ferrara, outro impacto se sucede. Sentados ao piano surgem o escritor Mário de Andrade (Luciano Chirolli) e a pintora Anita Malfatti (Agnes Zullani), e, estirado ao solo, o também escritor Oswald de Andrade (José Rubens Chachá). A cena, uma reprodução exata do desenho O grupo dos cinco, de Anita Malfatti, transporta o espectador para o ano de 1922, quando os quatro amigos, mais o escritor Menotti del Picchia, passaram a se reunir no ateliê de Tarsila, recém-chegada de Paris.

Entre a Cidade-Luz e a São Paulo dos barões do café, o espectador acompanha a trajetória destes ícones do modernismo brasileiro através de seus feitos artísticos, como os movimentos pau-brasil e antropofágico, e principalmente pelo ângulo da intimidade. Estão lá não só o entusiasmo, as alegrias, as polêmicas, as conversas jogadas fora, como as vaidades, as brigas, as paixões e os ressentimentos que moveram a amizade de quatro dos maiores talentos da literatura e da arte brasileira. No texto, nada de frases empoladas. Para a protagonista Esther Góes, responsável pela idéia inicial do projeto, em vez de transformá-los em motivo de culto, importa muito mais mostrar os quatro com grande espontaneidade.

Esta é a terceira vez que a atriz veste a personagem Tarsila. A primeira aconteceu em 1967, na antológica peça O rei da vela, do Teatro Oficina, na qual encarnava Heloísa de Lesbos, referência à autora de Abaporu.
A segunda aconteceu em Eternamente Pagu, filme de Norma Bengell,
de 1987, sobre a escritora Patrícia Galvão, pivô da separação de Tarsila
e Oswald de Andrade. “Já naquela época descobri que sua história
e a dos amigos era muito mais interessante que toda a mitologia criada em torno deles”, conta Esther. “Eles também eram muito engraçados
e frágeis, gente como a gente.” Para entrar no terreno da intimidade, além de pesquisar 15 livros, a autora Maria Adelaide Amaral centrou
foco na volumosa correspondência deles, especialmente a parcela
não publicada das cartas entre Anita Malfatti e Mário de Andrade, guardada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Muitos diálogos, inclusive, saíram diretamente das cartas. “Consultando a correspondência inédita vi, por exemplo, o desconforto de Anita diante da exposição que Tarsila fez em Paris, em 1926. Ali, fica claro sua dor-de-corno e sua crítica pertinente, cobrando do Mário o fato de ele promover tanto
a amiga”, diz Maria Adelaide.

Um dos momentos marcantes do espetáculo é o rompimento de Tarsila e Oswald, o Casal Tarsiwald, nas palavras de Mário. Na cena da separação, Tarsila se refere a Pagu, amante de Oswald, como “aquela normalista” – expressão passada pelo artista plástico Tuneu. “Foi dificílimo construir a personagem de Tarsila, porque ela parecia não ter defeito”, explica a autora. “Era elegantíssima, educadíssima, boníssima. Até descobrir esta passagem de sua vida, eu me perguntava como ia escrever a peça sem conhecer nenhuma maldição dela.” Característica que não falta à personalidade irreverente e às vezes leviana de Oswald, que, segundo seu amigo, o professor Antonio Candido, “era absolutamente brilhante na injúria”. Sua língua ferina criou epítetos nada elegantes para o colega Mário, a quem chamava de “Boneca de Piche” e “Miss São Paulo Traduzido em Masculino”, referências nada veladas ao homossexualismo do escritor mulato. Como se sabe, Mário morreu brigado com Oswald.

De posse de tantos elementos, Maria Adelaide Amaral costurou um
texto dinâmico, com boas situações dramáticas, que se adequam ao cenário da artista plástica Maria Bonomi, de volta à ribalta depois de
14 anos. Ela também abordou as principais situações históricas, ausentando-se de lacunas sem cair no didatismo chato nem no olhar alcoviteiro. Tarsila emociona ao acompanhar, da juventude à velhice,
o “arco dramático” de uma mulher que se manteve íntegra, apesar de todas as perdas materiais, afetivas e até da ética da amizade, como ressalta o diretor Sérgio Ferrara, ainda lembrando que nem o Casal Tarsiwald nem o grupo modernista foram tão brilhantes quanto na
fase em que estavam unidos afetivamente.