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Na semana passada, o governo dos Estados Unidos deu um passo inédito na escolha de novas armas para conter o HIV, vírus que causa a Aids. Na terça-feira 17, a agência americana que regula medicamentos, o FDA, autorizou, pela primeira vez, a venda de um medicamento para ser tomado de forma regular e continuada por pessoas saudáveis para protegê-las da infecção pelo vírus. O remédio, que se chama Truvada, acondiciona na mesma cápsula azul duas substâncias já usadas contra o HIV, o tenofovir e a emtricitabina.

De acordo com o FDA, a droga pode ser receitada a indivíduos altamente vulneráveis ao risco de contrair o HIV por meio de atividade sexual. Pela ampla definição do órgão americano, portanto, estão incluídos trabalhadores do sexo, heterossexuais e homossexuais que têm múltiplos parceiros e companheiro não contaminado em casais nos quais um deles é soropositivo (chamados de casais discordantes). Nos casos em que a seguradora de saúde não assumir o pagamento do remédio, o interessado em tomá-lo precisará desembolsar cerca de US$ 12 mil por ano.

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PREVENÇÃO
O publicitário Danilo participou dos testes com o Truvada no Brasil

Fabricado pelo laboratório Gilead Sciences, na Califórnia, o Truvada já é usado em 93 países como um dos componentes do coquetel de medicamentos dado aos pacientes. A decisão de disponibilizá-lo a pessoas não infectadas foi tomada com base nas conclusões de quatro testes internacionais. O primeiro desses estudos, cujos resultados foram publicados em 2010 pelo “The New England Journal of Medicine” – prestigiada publicação científica –, avaliou o desempenho da medicação entre 2.499 homens que fazem sexo com homens, distribuídos em seis países. O estudo teve a participação de 11 instituições de pesquisa. Entre elas a Unidade de Pesquisa Clínica de São Paulo, ligada à Universidade de São Paulo. O publicitário paulistano Danilo Poveza, 31 anos, foi um dos recrutados. “Achei importante participar”, conta. Homossexual e soronegativo, Danilo tomou a medicação todos os dias por um ano.

Nesse trabalho, ficou demonstrado que o nível de proteção oferecido pela droga variou de 43% a 73%. Outros dois estudos mostraram níveis de proteção similares. O quarto, realizado com mulheres no continente africano, foi interrompido por causa dos resultados ruins e da baixíssima adesão ao tratamento. Os trabalhos foram feitos de forma independente do fabricante do remédio. Receberam patrocínio de entidades como a Fundação Bill e Melinda Gates e do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos.

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RISCOS
Rosenthal teme a falsa sensação de segurança que a droga pode dar. Kallás (abaixo)
foi um dos coordenadores do trabalho sobre a nova medicação feito no Brasil

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A decisão americana causou impacto. As autoridades da saúde da França, por exemplo, pretendem aguardar novos estudos antes de adotar a estratégia. No Brasil, onde o remédio está aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas nem sequer integra o coquetel distribuído na rede pública, a posição do governo foi de cautela. “Mesmo que três estudos tenham mostrado bons resultados em populações expostas a alto risco de infecção pelo HIV, ainda há muitas incertezas quanto à sua utilização na vida real”, disse o infectologista Dirceu Greco, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. Isso quer dizer, portanto, que por aqui ainda não se sabe se o Truvada será oferecido, seja como tratamento, seja como preventivo.

Até agora, o que existia para conter o vírus era aplicado depois que a pessoa já havia tido contato com ele. Nesses casos, o indivíduo tem até 72 horas após ter se exposto ao risco para começar a receber o coquetel com medicações contra o vírus – o mesmo usado pelos pacientes. Os remédios devem ser tomados por quatro semanas. Por isso, entre os médicos e outros profissionais que atuam no combate à doença, é consenso que, do ponto de vista científico, a aprovação do Truvada como recurso de prevenção deve ser comemorada. “Ele amplia os recursos para prevenir a disseminação do HIV”, afirmou o infectologista Esper Kallás, da Universidade de São Paulo. O médico participou do primeiro estudo com o remédio e agora está concluindo novas análises sobre sua ação. “Estamos observando que os voluntários do estudo que apresentavam quantidade do remédio detectável no sangue, o que significa que tomavam a medicação corretamente, chegaram a ter até 93% de proteção.”

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ATIVISMO
Nunes Neto acredita que o remédio vai beneficiar
casais em que um dos parceiros é soropositivo

Na opinião de Gottfried Hirnschall, diretor do departamento de HIV/Aids da Organização Mundial da Saúde, a profilaxia pré-exposição é um enfoque promissor. “Acreditamos que, provavelmente, seja um instrumento de intervenção a grupos nos quais outras prevenções podem não ser acessíveis ou difíceis de implementar”, disse. Segundo o infectologista Artur Timerman, do Hospital Edmundo Vasconcelos, de São Paulo, o medicamento pode ser um bom protetor, por exemplo, para usuários de drogas injetáveis. “Eles integram um grupo de extrema vulnerabilidade à contaminação pelo HIV”, diz. O ativista Américo Nunes Neto, fundador do Instituto Vida Nova, que atende soropositivos em São Paulo, por sua vez, acredita que o remédio pode ser um bom recurso para os casais nos quais um dos parceiros está contaminado. “Temos muitos casais nessas condições”, afirma. A assistente de responsabilidade social Silvia Almeida, orientadora de mulheres portadoras no Grupo de Incentivo à Vida, compartilha a mesma opinião. “Há muita gente que não se sente segura nem usando a camisinha”, diz. “Dependendo da compreensão do casal, pode haver uma combinação dos dois.”

Uma das principais preocupações entre os especialistas, no entanto, é a de que a liberação do Truvada como remédio preventivo seja a senha para um relaxamento na prevenção. “As pessoas podem se sentir ilusoriamente protegidas e deixar de usar a camisinha”, afirma Timerman. “E os grupos para os quais o remédio é indicado com essa finalidade já são normalmente refratários à utilização do preservativo.” O infectologista Caio Rosenthal, do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, de São Paulo, trata pacientes com Aids há mais de 15 anos. Ele considera a droga um bom instrumento, mas concorda com o colega Timerman. “O remédio pode dar uma falsa sensação de segurança”, diz. “Sou a favor da liberação desse tipo de medicamento para casais discordantes que estejam em relações estáveis”, defende.

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Além disso, há outras ponderações. “O Truvada ou a associação de tenofovir com emtricitabina, uma combinação que está disponível no Brasil há um bom tempo e tem efeito igual, não é um mar de rosas. O bom resultado depende do comprometimento em tomar o remédio todos os dias, pois não pode haver falhas, e de suportar os efeitos colaterais”, explica o infectologista Rosenthal. Entre os efeitos estão náuseas e o risco de desenvolvimento de osteoporose (doença caracterizada pelo enfraquecimento dos ossos). Existe também a possibilidade de o mau uso levar à criação de resistência a um dos componentes do remédio. “Mas os resultados dos estudos feitos até agora mostraram que a ocorrência de resistência é rara”, afirma Kallás.

O consenso é que o Truvada deve ser entendido – e usado – como uma arma de prevenção de fato poderosa, mas que integra um arsenal mais amplo criado com essa finalidade. “Ele inclui outras medidas, como a prática do sexo seguro”, diz o pesquisador Kallás. É por essa razão que todas as iniciativas não medicamentosas adotadas até hoje precisam ser mantidas e aprimoradas. “A base para a prevenção é o diálogo dirigido para cada grupo e o uso do preservativo”, argumenta Zarifa Khoury, coordenadora da Assistência do Programa Municipal de DST/Aids da cidade de São Paulo.

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Na área de tratamentos, a comunidade científica teve outro motivo para festejar na semana passada. Pesquisadores do The Scripps Research Institute, dos Estados Unidos, anunciaram a descoberta de um composto que, em laboratório, praticamente eliminou a presença do HIV de dentro das células. A façanha foi registrada inclusive nas células extraídas dos chamados reservatórios, locais nos quais as medicações costumam não ter efeito, o que inviabiliza, hoje, a eliminação total do vírus do corpo. “O composto teve ação sobre essas células nas quais o HIV se esconde”, afirmou Susana Valente, coordenadora do trabalho.

Foram notícias como essas que aumentaram o otimismo dos principais pesquisadores de Aids do mundo, reunidos também ao longo da semana passada em Washington, nos Estados Unidos, em um encontro sobre a doença – que ainda atinge 34,2 milhões de pessoas no planeta e que provoca a morte de cerca de dois milhões de indivíduos por ano. Um dos mais famosos, o infectologista Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, por exemplo, fez uma previsão fabulosa. “Se todos os recursos que temos hoje forem disponibilizados amplamente para quem precisa, pode ser possível que tenhamos uma geração livre da Aids”, afirmou. “Isso significa que as crianças de hoje poderiam, um dia, viver em um mundo no qual a infecção pelo HIV e as mortes por Aids sejam raras.”

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