O italiano Leonardo da Vinci, o reverenciado artista de obras como A última ceia e a Mona Lisa, tinha um rosto finamente esculpido e sem mácula, vestia túnicas curtas e coladas ao corpo. Era vegetariano convicto, homossexual assumido – embora há quem diga que era bissexual e teria gerado um filho aos 17 anos – e, detalhe comum a muitos gênios, cercado de incoerências. Libertava os pássaros engaiolados, mas costurava asas e chifres pintados de mercúrio no dorso de um lagarto para transformá-lo num dragão que aterrorizava os cortesãos do Vaticano. Divertia-se em revestir esses animais de um tipo de cápsula de cera para depois soprar em seu interior, fazendo-os voar e se esborrachar no chão. Considerava o corpo humano a máquina perfeita, o microcosmo do universo, mas desprezava o homem.
 

No dia 15 de abril, completam-se 550 anos do nascimento de uma das figuras mais complexas, enigmáticas e brilhantes da história. A pintura que imortalizou Leonardo consumia-lhe menos o intelecto, o tempo e o prazer do que as anotações e os desenhos que ilustram o seu legado de 13 mil páginas de estudos em quase todas as disciplinas: arquitetura, engenharia, mecânica, óptica, aerodinâmica, astronomia, geologia, paisagismo, botânica. Movido pela busca quase psicótica do conhecimento universal, para Leonardo nada era como parecia ser.

À noite, ele trocava a pena e os pincéis pelo bisturi e o necrotério para secionar órgãos, separar músculos e nervos humanos. Era uma atividade solitária e às escondidas, já que a dissecação de cadáveres constituía uma heresia na Europa medieval. Sem os produtos químicos da modernidade, os cadáveres se decompunham em pouco tempo. Leonardo tinha que buscar carne fresca, trabalhar rápido e sujeitar-se aos riscos de infecção. Antes de ficar famoso e tudo lhe ser permitido, chegou a ser acusado de invocação aos espíritos. A precisão e o gabarito de seus desenhos tridimensionais, em várias perspectivas, cortes e camadas, só seriam aperfeiçoados no século XX com o advento dos raios X e da tomografia computadorizada. Uma de suas representações mais ilustres e originais é a do feto no útero, à qual acrescentou: “A criança fica rodeada de água porque os objetos pesados pesam menos na água do que no ar, ainda mais se ela for viscosa e densa.”

Tema de uma penca de biografias, Leonardo já foi descrito como um gênio excêntrico, anormal e que acumulava poderes. Para comemorar
seu aniversário, a editora Record lança na data de seu nascimento mais uma obra sobre o artista polímata. Leonardo, o primeiro cientista, escrito pelo jornalista britânico Michael White, relata a trajetória pessoal do “homem-lenda” e mergulha na fascinante herança de seu trabalho, perdido por dois séculos depois de sua morte, em 1519. Autor de biografias sobre Isaac Newton, Charles Darwin, Albert Einstein e Stephen Hawking, White credita o pioneirismo da ciência a Leonardo, o homem à frente de seu tempo.

O livro rebate críticas, como a do biólogo americano Stephen Jay Gould, que minimiza a credibilidade científica do pintor. O motivo seria a obsessão de Leonardo em mostrar que o corpo humano e a Terra se interligavam, um como o espelho do outro, o que o teria levado a enganos no estudo da anatomia. “A Terra tem o espírito do crescimento. Sua carne é o solo, seus ossos, as rochas que formam as montanhas (…) seu sangue, as fontes d’água, sua respiração (…) é representada pela enchente e vazante do mar, seu coração é o fogo”. Essas pílulas poéticas teriam lhe roubado, segundo Gould, “o manto de cientista genuíno”. Sem contar que Leonardo era empírico e não sustentava seus experimentos com um arcabouço matemático. “Ele chegou a conclusões notáveis, e ter conseguido um pequeno conjunto de resultados importantes numa vasta gama de disciplinas coloca Leonardo num panteão próprio”, defende White.

Paranóico com o risco de suas idéias serem plagiadas, Leonardo redigia da direita para a esquerda, numa escrita espelhada. Descreveu a formação das chuvas, esboçou um aparelho para medir a umidade do ar, um espelho octogonal que refletia imagens repetidas, uma mobília dobrável, um conjunto de portas que se abriam e fechavam automaticamente com o uso de contrapesos. Apesar de nunca ter estado numa batalha, foi um exímio projetista militar, o que lhe serviu de porta de entrada para a sociedade italiana. É de surpreender a obsessão do gênio pela automação numa civilização, descreve White, “onde as maiores velocidades eram atingidas num dorso de cavalo, três séculos antes da primeira máquina a vapor”. Dessa linha de pensamento surgiu o tanque em forma de disco voador, com um círculo de canhões capaz de se mover através de rolamentos. Há também arcos múltiplos com os quais se podia fazer chover sobre o inimigo uma barragem de flechas.

Luz – As mãos de Leonardo eram quase divinas, mas era com os olhos que ele descobria o mundo. Daí seu fascínio por dispositivos ópticos e pela estrutura dos glóbulos oculares, que ele fervia em clara de ovo e água antes de estudá-los. Nesse tempo, acreditava-se que o olho percebia a representação verdadeira do mundo. Leonardo concluiu que o olho engana e os raios de luz se invertem ao passar por uma abertura estreita – princípio que ele utilizou para a construção de um predecessor sofisticado da máquina fotográfica.

O artista estava convencido de que a mecânica do vôo dos pássaros poderia ser imitada com o uso de asas móveis e a força muscular humana. No Codex sobre o vôo dos pássaros, um manuscrito de 18 folhas, ele constata que “tanta pressão é exercida pelo objeto contra o ar quanto pelo ar contra o corpo”. Chegou perto, assim, de um dos conceitos mais avançados de seu tempo, antecedendo em 200 anos um dos postulados de Newton: o princípio da ação e reação.

Entre os desenhos inventivos para lançar o homem aos céus, incluem-se o parafuso aéreo, ou helicóptero, estrutura em espiral revestida com tecido no topo, que o tripulante faria girar através de manivelas para impulsionar o veículo para ci ma. E um pára-quedas de 7,31 metros de diâmetro, as mesmas medidas dos similares atuais.

Condenado à ilegitimidade por ser filho bastardo, Leonardo foi impedido de estudar e desvendou o Universo pela experimentação e o raciocínio. Nascido na lasciva Florença, berço da Renascença e mercado intelectual dos séculos XV e XVI, Leonardo teria se iniciado sexualmente entre 13 e 15 anos. Aos 23 anos, o inventor foi acusado de sodomizar o jovem Jacomo Salterelli. O episódio foi parar na Justiça e deixou marcas indeléveis no caráter de Leonardo, que se tornou defensivo e desconfiado. Mas há poucas informações autobiográficas nas anotações do gênio florentino – que no livro escrito por White morreu de velhice em 1519, deixando sozinho um belo fanciullo (rapazola). Das 13 mil páginas de notas, conhece-se o paradeiro de sete mil, preservadas por museus e colecionadores. Há uma torcida para desenterrar novos fragmentos que respondam a tantas perguntas que ainda pairam no ar. Uma delas é se foi Leonardo o verdadeiro inventor do telescópio. Nos seus alfarrábios define os princípios de funcionamento do aparelho, com um lembrete: “construir óculos para ver a lua aumentada”.