Ligar a televisão e selecionar um programa é uma atitude simples que pode revelar muito sobre um povo – principalmente se este povo for um voraz consumidor de produtos televisivos, como o brasileiro. Dados do Ministério das Comunicações estimam que atualmente haja por aqui cerca de 65 milhões de aparelhos de tevê, fatia significativa do bolo de 400 milhões de toda a América Latina. Com estes números na cabeça, Muniz Sodré e Raquel Paiva, dupla de professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadores do CNPq e escritores, decidiram esmiuçar o fascínio e os pactos existentes entre a televisão e seu público no livro O império do grotesco (Mauad, 160 págs., R$ 26), a ser lançado na segunda-feira 15. A obra que identifica e explica o grotesco nas artes, na vida e na mídia chega às prateleiras exatamente 30 anos após o lançamento de A comunicação do grotesco, de Muniz Sodré, um sucesso editorial que está na 15ª edição.

Em entrevista a ISTOÉ, o autor – um dos mais respeitados teóricos da comunicação no País – diz que o telespectador não é vítima e sim cúmplice da programação grotesca e que o famoso padrão Globo de qualidade há muito tempo foi substituído pela lógica de mercado ou pela força do ibope. Para Sodré, os reality shows são patéticos porque se esmeram em provar que a vida é tão banal quanto a repetição dos atos miúdos do dia-a-dia.

ISTOÉ – O que é o grotesco?
Muniz Sodré –
A estética no Ocidente sempre foi da barriga para cima, olhar para o céu, para o elevado. O grotesco é a estética da barriga para baixo, tem a ver com o que está próximo da terra, portanto, com os
dejetos, com a escatologia, com os excrementos. Mas o grotesco pode ser crítico. Porque, na verdade, ele é a estética do contrário.

ISTOÉ – Entre as vertentes da arte, a tevê é a que mais dá visibilidade ao grotesco?
Sodré –
A televisão dá mais visibilidade porque é uma prática de massa, de grande público. Ela mostra claramente que o grotesco é a estética arregimentadora. Não só a televisão brasileira. Acontece em todo lugar onde existe uma corporação acelerada de extratos da população, que não se reconhece de modo hegemônico.

ISTOÉ – Na linha do grotesco, o Programa do Ratinho é, de fato, pior do que Domingão do Faustão, Fantástico ou Linha direta?
Sodré –
Já vi nesse Linha direta cenas horripilantes, como um pai atirando em uma filha, numa simulação, evidentemente. Acontece o mesmo no Ratinho, que exibe cenas igualmente horrorosas. É tudo igual. Todos os ideais de veiculação cultural ou de educação pelas tevês, todas essas coisas que diziam sobre os meios de comunicação para educar o público, isso é tudo balela. A televisão não está nem aí para isso de veicular conteúdos informativos, educativos, ter aquelas funções que a sociologia americana atribuía aos meios de comunicação. A tevê mostrou que a primeira grande coisa é a arregimentação de públicos em função do mercado. Só que, para isso, é preciso reduzir o discurso a um denominador comum, o mais baixo, que chega a uma certa animalidade. O que todos temos em comum é que nós somos animais, animais que falam.

ISTOÉ – A Rede Globo ainda mantém o famoso padrão Globo de qualidade ou isso já passou?
Sodré –
Hoje, a preocupação é com o ibope. Toda aquela história de padrão Globo de qualidade existiu enquanto a emissora estava sozinha, lá no pódio. Quando a concorrência chega apelativa, ela apela também. É a lógica de mercado. Também não escapam os canais pagos nem as emissoras sem finalidades comerciais, que terminam competindo pela audiência. Esse Marcos Mion, cuja origem é a MTV, é de um grotesco claríssimo, embora seja considerado cult. Acho que quando se trata de conquistar o grande público não adianta, tem que apelar para o grotesco. Ele é de novo a estética triunfante.

ISTOÉ – O psicanalista Jacques Lacan afirmou que alguns programas acabam com a diferença entre a televisão e seu público. Os reality shows se encaixam nesta premissa?
Sodré –
Mais do que nunca. É a máquina televisiva criando seu público. Depois ela pergunta do que o público gosta e ele repete o que ela mostra. É o sistema de realimentação. Ao cabo de certo tempo, o pessoal que produz e o que vê partilha do mesmo universo de sonhos, esperanças, gostos, desejos. Em Casa dos artistas, em determinado momento uma participante levanta a saia para quebrar a monotonia do ambiente. A fórmula patética é a mesma em Big brother Brasil. Um dos jogos iniciais consistia em determinar quanto tempo um grupo de pessoas conseguiria permanecer dentro de um automóvel. O vencedor revelou o truque: flatulência contínua de modo a minar a resistência dos outros. Na verdade, os reality shows reduzem o cotidiano das pessoas, mas não é o cotidiano verdadeiro. Não é reality, é só o show. É o grau zero dos sentidos porque tudo é reduzido aos miúdos atos repetidos do dia-a-dia, como se a televisão quisesse provar que a vida é banal.

ISTOÉ – Mas o público se identifica ou vê apenas o seu imaginário?
Sodré –
É o imaginário, mas, coletivamente, esse público é incapaz de fazer distinção entre o imaginário e o real. Não sabemos claramente se as pessoas vêem o reality show como real porque é próprio da televisão essa falta de distinção. Diferente do cinema, por exemplo, que deixa claro o terreno da fantasia.

ISTOÉ – Até o jornalismo se encaixa nessa lógica?
Sodré –
O jornalismo atual tem uma tendência a fazer ficção, a dramatizar. O jornalismo, claro, está preso aos fatos, mas, com o passar do tempo, esses fatos foram fortemente atravessados pelo imaginário, pela forma de contá-los.

ISTOÉ – No livro, vocês dizem que o público não é vitima e sim cúmplice da tevê.
Sodré –
Há um contrato entre as partes. Aceito tudo como verdade, caso contrário, não me divirto. É um pacto simbólico. Eu lhe dou um programa parecido com as expectativas culturais que você tem e você fica ligado em mim. Não vou dar nada acima do seu horizonte cultural possível. À medida que vou recebendo programas que posso entender sem esforço, que me divirtam, vou me tornando cúmplice de tudo aquilo que a televisão me dá. Não é que a televisão me imponha. Vou aceitando e cada vez mais sou parte e não vítima. Afinal, sou eu quem liga ou desliga a televisão.

ISTOÉ – A tevê faz a demonstração do lixo, dos feios, dos disformes e miseráveis. Neste contexto, a periferia se reconhece, a elite se distingue e está mantido o equilíbrio e o preconceito?
Sodré –
Sem dúvida nenhuma. É mais um meio de hierarquizar as diferenças de classe e preferências sociais. Por ali se sabe quem é elite e quem é periferia, quem gosta de ópera e quem gosta de Faustão, Ratinho. Isso vale para todos os países. Claro que, dependendo do nível da sociedade civil, a influência é diferente. Mas, com a globalização, a tevê vai perdendo suas amarras nacionais e tende a ficar igual em todos os lugares. O grotesco é a estética dominante, seja na França, seja na Inglaterra, na Alemanha ou no Brasil.

ISTOÉ – Temos vocação mais forte para este grotesco devido ao grande grau de analfabetismo?
Sodré –
Não é um destino, mas sem dúvida nenhuma a tevê e o grotesco são uma expressão dessa tensão entre o rural e o urbano. Então, não é destino nacional, mas o resultado de uma conjuntura nacional. Agora, o grotesco sempre pareceu estar aí no olhar de certos intelectuais, como Lima Barreto, ou grandes caricaturistas, como Jaguar, Henfil. O colunista José Simão, que escreve na Folha de S.Paulo, é um fantástico cronista do grotesco. Eu o acho magnífico. As definições dele, sejam as caricaturais, sejam as grossas – porque ele é grosso –, são notáveis. Dizer que dona Ruth Cardoso é um quiabo de óculos é cruel.

ISTOÉ – Lima Barreto disse que o Brasil não tem povo, só público. A idéia ainda subsiste?
Sodré –
Genial e atual. Essa frase foi dita porque a República foi feita por elites e militares. O povo assistiu a isso bestializado. Decretaram a República, o povo não queria, queria a monarquia. Lima Barreto disse nesse sentido, de público que apenas assiste ao que as elites decidem. Era nesse sentido, mas é atualíssimo.