"E Jesus foi para o monte das Oliveiras (…) Então os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério (…): Mestre, esta mulher foi agora mesmo apanhada em adultério. Ora, Moisés na lei mandou-nos apedrejar tais pessoas. Que dizes tu, pois? (…) ‘O que de vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a pedra’” (João 8:1). No final, a multidão se retirou. Em pleno século XXI, em Sokoto, na Nigéria, Safiya Husseini também por pouco não foi apedrejada até a morte pela acusação de adultério. Só que a justificativa para a lapidação de Safiya não era a lei mosaica, mas a sha’ria, a lei islâmica introduzida há dois anos em 12 dos 36 Estados nigerianos. Inicialmente, Safiya havia dito que fora estuprada, exigindo da Justiça que o suposto estuprador pagasse uma indenização. Ninguém acreditou na história e ela acabou confessando que Adama era filha de seu ex-marido, Yakabu Abubakar, que a havia currado. Ele tem outras duas esposas e sumiu do mapa. A corte não só rejeitou a acusação como em outubro do ano passado a condenou à pena capital. Segundo a tradição, metade de seu corpo ficaria enterrado na areia e ela seria apedrejada até morrer, com pedras calculadamente não tão grandes que provocassem morte rápida nem tão pequenas que tornassem o suplício demasiadamente longo. O caso ganhou repercussão internacional e Safiya acabou absolvida na segunda-feira 25. Aparentando muito mais do que seus 35 anos, ela beijou a prova do crime: a pequena Adama, de apenas 11 meses. “Outros cometeram crimes muito piores, mas não foram castigados porque desfrutam de influências. Isso está me acontecendo porque sou uma mulher pobre”, disse ela. O presidente nigeriano, Olusegun Obasanjo, cristão, entidades de direitos humanos e 77 parlamentares europeus pressionaram para que a condenação fosse revertida. “Esta é a primeira vez que um tribunal que aplica a sha’ria admitiu um recurso de apelação”, comemorou Esteban Beltran, da
Anistia Internacional.

Exemplo brasileiro – O caso de Safiya é emblemático de um tipo de comportamento que as mulheres, cada vez mais, começam a adotar em relação à violência masculina. Ao contrário do que acontecia até há bem pouco tempo, as mulheres castigadas por abusos estão rompendo o silêncio. Silêncio causado pela humilhação, pelo constrangimento e pelo medo. Aos poucos, elas vão revertendo essa tortura, fruto de uma suposta supremacia masculina, no combate à chamada violência de gênero, ou simplesmente violência contra a mulher. Em Washington, o caso da brasileira Maria da Penha Maia Fernandes foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA) por organizações não-governamentais (ONGs). Maria da Penha tornou-se um exemplo de como o medo de denunciar a violência pode ser vencido. No dia 29 de maio de 1983, essa cearense, farmacêutica, estava dormindo quando seu então marido Marco Antônio Heredia Viveros disparou um tiro contra ela. Duas semanas depois, ele tentou eletrocutá-la. Ela ficou paraplégica e com sérias sequelas físicas e resolveu denunciá-lo às ONGs Centro para a Justiça e Direitos Internacionais (Cejil) e Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, que levaram o assunto para a OEA. Em abril do ano passado, o Brasil foi condenado pela OEA, depois de se constatar que havia “uma clara discriminação contra as mulheres, agredidas pela ineficácia dos sistemas judiciários brasileiros”. O Brasil nada fez para responder ao caso e agora está sendo cobrado pela OEA. “Estamos em um outro nível. Hoje existe a possibilidade de se apresentar internacionalmente casos individuais, dando visibilidade aos abusos contra a mulher”, comemora Liliana Tojo, da Cejil.

Em todo o mundo, uma em cinco mulheres já sofreu violência física ou psicológica. A cada cinco anos, as mulheres perdem em média um ano de vida em decorrência da violência doméstica. Na América Latina e no Caribe, essa violência atinge de 25% a 50% do sexo feminino. Nos EUA, anualmente, 700 mil mulheres são violadas. No Brasil, cerca de 70% dos crimes contra as mulheres são cometidos pelos próprios maridos ou companheiros. Em 1993, durante a Conferência Mundial dos Direitos Humanos da ONU, em Viena, na Áustria, ficou estabelecido, pela primeira vez, que não se pode mais aceitar a violência de gênero. O caso de Maria Penha, por exemplo, foi baseado nas normas estabelecidas na Convenção de Belém do Pará de 1994, que determinou que os governos devem incluir em sua legislação interna medidas que venham a erradicar a violência contra a mulher.

Uma das maiores cobranças recai sobre o Judiciário, cuja morosidade alimenta o sentimento de impunidade. “As mulheres estão cada vez mais dispostas a denunciar, mas a punição ainda está longe de acontecer. E isso as desestimula”, disse Maria da Penha. Com a resolução da OEA, ela revigorou suas esperanças de ver seu ex-marido, Marco Antônio Heredia Viveiros, economista, até hoje solto e lecionando na Universidade Potiguar do Rio Grande do Norte, atrás das grades. Para combater a impunidade, algumas organizações trabalham diretamente com o sistema judiciário. Esse é o caso do Fundo de Prevenção contra a Violência Familiar, com sede em São Francisco. A diretora do fundo, Noelle Colomé, montou um programa educacional especialmente dirigido aos tribunais. “Promovemos cursos para juízes e advogados que lidam com casos de violência doméstica para que as vítimas sejam melhor assistidas e as decisões judiciais possam realmente ter efeito”, disse a ativista a ISTOÉ. A instituição também acaba de lançar uma campanha dirigida aos pais de família para que eles se unam às mulheres nessa luta. “São pais que falam a seus filhos sobre a violência que acontece em casa, onde ocorre a maior parte dos incidentes. Muitos jovens acabam abusando sexualmente de suas namoradas e quanto mais cedo os educarmos, melhor será.”

O perigo da Aids – Noelle, 34 anos, sabe exatamente a importância de uma mulher ou menina violentada ser bem assistida. Sua mãe foi estuprada quando ela era garota. Assim como Noelle e Maria da Penha, a grande maioria que adotou a causa foi vítima ou conhece alguém que sofreu abuso sexual. A jornalista sul-africana Charlene Smith, 44 anos, resolveu colocar a boca no trombone depois de ser estuprada por um homem que entrou em sua casa. Mesmo sendo ameaçada de morte, Charlene resolveu contar sua história num país que bate o recorde em número de estupros. Na África do Sul, são cerca de um milhão de mulheres estupradas a cada ano. “Denunciar o estupro foi mais fácil para mim do que para outras mulheres porque eu já era uma jornalista respeitada”, disse. No país, ainda existe nas gangues uma cultura de estupro, chamada jackrolling, quando jovens saem à caça de garotas com o propósito explícito de violentá-las. Como a África do Sul também acumula o maior índice de vítimas de Aids, muitas vítimas de estupro acabam se contaminando com o vírus HIV.

Se os pesquisadores sul-africanos explicam o alto índice de estupros como herança do apartheid, a violência contra a mulher independe da idade ou da classe social. Os pesquisadores afirmam que o machismo contribui muito para essa cultura de violência. De acordo com levantamento realizado em Johannesburgo, 80% dos homens alegam que cometeram estupro com o “consentimento” das mulheres. Passear, tomar um drinque juntos são pretextos usados muitas vezes nos tribunais como justificativas para o abuso sexual. Fica, então, mais difícil provar quando o marido comete o chamado estupro conjugal, o ato sexual não-consentido. Segundo a Unicef, uma em cada dez mulheres no mundo são vítimas de estupro cometido por homens que elas conhecem. “Temos que desafiar o mito de que as mulheres pedem para serem estupradas pela forma como se vestem ou se comportam”, afirmou Charlene.

E enfrentar esse desafio às vezes significa receber ameaças de morte. Assim aconteceu com a chilena Luz Rioseco Ortega, 41 anos, que fundou o Centro para as Vítimas de Violência Julieta Kirkwood, depois de anos trabalhando como advogada na periferia de Santiago, onde centenas de mulheres lhe pediam auxílio judicial. “Cerca de 70% delas já tinham sofrido violências e ninguém se importava”, disse. No início dos anos 90, Luz montou um programa para educar os policiais e o sucesso foi tal que foi adotado pelo governo chileno. “A polícia chilena melhorou muito. Hoje ela prende os agressores e atende melhor às chamadas das vítimas. Antes, os policiais diziam que as mulheres eram as culpadas pelos estupros”, disse a advogada. Luz conseguiu fazer com que fosse aprovada em seu país a primeira legislação que pune os agressores e garante proteção policial às mulheres. Mas o caminho ainda é longo. No mesmo momento em que Safiya foi absolvida, uma outra nigeriana recebeu a mesma sentença de morte sob a acusação de adultério.