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A força do relator
O ministro Joaquim Barbosa, indicado por Lula, é considerado "duro"

Dois anos, dois meses e 16 dias depois da denúncia do deputado Roberto Jefferson de que um grupo de petistas usou recursos públicos e privados para subornar parlamentares e partidos com o objetivo de aprovar medidas de interesse do governo Lula no Congresso, o chamado Escândalo do Mensalão, o Supremo Tribunal Federal começou, às 10h15 da quarta-feira 22 de agosto, a dar o primeiro passo para uma eventual punição das 40 pessoas envolvidas no caso. No silêncio da sala quadrada, rodeada pelas gélidas paredes de mármore carrara bege, o ministro Joaquim Barbosa, encarregado de relatar o inquérito, iniciou a leitura das 400 páginas nas quais resumiu a volumosa peça jurídica de 52 volumes e 140 anexos. Barbosa padecia de fortíssimas dores nas costas – e foi por isso que, mesmo em momentos em que o protocolo lhe permitia sentar, permaneceu de pé. Dores nas costas são uma constante para o ministro, mas a agudeza dessa crise parecia lembrar que seus ombros carregavam o peso histórico do que está sendo chamado de "julgamento do século".

 

O ex-ministro da Secom Luiz Gushiken vira réu e será processado por peculato

Se, ao final desse julgamento, a maioria dos dez ministros do STF decidir acatar a denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, que pede a condenação dos 40 por crimes variados como "peculato", "corrupção ativa", "formação de quadrilha", "evasão de divisas", "lavagem de dinheiro" e "falsidade ideológica" – as penas conjuntas chegam a 1,1 mil anos de cadeia -, o Brasil estará ingressando numa era inédita. Pela primeira vez na história deste país, políticos e outras altas autoridades podem vir a pagar, com pena de prisão, por desmandos cometidos enquanto estavam no auge do poder. Além disso, o julgamento do século promete reviver velhas querelas entre governo e oposição. "Um esquema desse porte não é possível ser feito sem a participação do governo", disse na sua denúncia o procurador-geral da República. De quebra, esse processo marca uma divergência entre ministros do STF sobre a influência de algumas correntes jurídicas nas decisões do tribunal.

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Dentro do plenário, durante a sessão de quarta-feira, os ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia foram flagrados pelas lentes do fotógrafo Roberto Stuckert Filho, do jornal O Globo, trocando mensagens eletrônicas. Nelas, além de anteciparem votos futuros, deixaram transparecer que, nos bastidores do Supremo, tão importantes quanto os 40 mensaleiros eram dois homens que nem estavam implicados no processo, nem votariam no julgamento: o ministro recém-aposentado Sepúlveda Pertence e seu possível substituto na corte, Carlos Alberto Direito. Pelas mensagens trocadas entre Lewandowski e Cármen Lúcia, a política interna em torno dessa mudança parece influenciar as posições de alguns ministros no processo dos 40 (leia quadro à pág. 34).

A cerca de 300 metros do tribunal, o grupo de mensaleiros do PT transformou o gabinete do deputado João Paulo Cunha (SP) no bunker de onde acompanharam o julgamento do Supremo.

No segundo dia, as mensagens de Lewandowski e Cármen Lúcia animaram os debates. Os deputados reeleitos João Paulo, José Genoino, Paulo Rocha e José Mentor discutiam com seus advogados a possibilidade de tentar anular o julgamento a partir do que foi dito eletronicamente pelos ministros. Em tese, poderiam considerar que eles combinavam votos e assim teriam violado o princípio da incomunicabilidade na sessão. O debate acalorado, porém, não chegou a uma conclusão sobre o caminho a seguir. "Se o julgamento for técnico, não vai haver ação", comentou João Paulo. "As acusações serão rejeitadas", disse. No dia seguinte, o ex-presidente da Câmara passou a ser réu e responderá por "peculato" e "corrupção ativa".

Foi a senha para que os principais envolvidos no caso começassem a perder a ilusão de que poderiam se livrar de sentar no banco dos réus. Afinal, o episódio de João Paulo era um dos pontos menos graves da denúncia. Se seu caso foi aceito, era a sinalização de que o Supremo estava pronto a referendar definitivamente a existência do mensalão e transformar os acusados em réus. à distância. No primeiro dia de julgamento, a mil quilômetros de distância, Roberto Jefferson e José Dirceu, os dois pólos opostos que deflagraram a crise do mensalão, acompanharam a denúncia pela tevê e divulgaram suas impressões nos blogs que possuem na internet. "Vou provar minha inocência", escreveu José Dirceu na quarta 22. No segundo e terceiro dia de julgamento, o ex-ministro colocou no ar o vídeo em que seu advogado faz a defesa e postou ataques à imprensa.

O reconhecimento do mensalão pelo Supremo obrigou o governo a colocar em ação o seu plano de isolamento da crise. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava em Curitiba (PR) e não ficou surpreso quando soube dos primeiros resultados do julgamento. Todas as informações que lhe chegavam desde a segunda-feira indicavam que o STF aceitaria a denúncia do mensalão. Sua maior preocupação era criar uma proteção contra eventuais respingos dessa crise. Para tanto, ele próprio nada comentaria. É por isso que, diante dos momentos iniciais do julgamento que envolve alguns dos seus melhores amigos, parceiros políticos desde a fundação do PT em 1980, Lula se manteve em absoluto silêncio. "Lula diz que seu governo não está sendo julgado neste momento", postou Roberto Jefferson em seu blog. "Mas todo mundo sabe que está."

PRESCRIÇÃO, O OUTRO NOME DA IMPUNIDADE
O que se convencionou chamar de maior julgamento de todos os tempos na Suprema Corte brasileira é apenas o começo de um processo que vai levar anos a fio – e que pode acabar no limbo da impunidade. A se confirmar a tendência do STF de decidir pela abertura de ação penal contra José Dirceu, Delúbio Soares, Marcos Valério e os outros 37 denunciados, começa uma nova e cansativa batalha, na qual o Ministério Público, no papel de acusador, terá de enfrentar as artimanhas da defesa para evitar que recursos protelatórios levem os crimes para a prescrição. Dependendo da capacidade dos advogados, o processo pode levar mais de dez anos. E é aí que a protelação pode levar à impunidade. Parte dos crimes previstos, como formação de quadrilha e falsidade ideológica, prescreve em oito anos. Em 12 anos, prescrevem os crimes de corrupção ativa e passiva e evasão de divisas. Os que demoram mais – peculato, gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro – prescrevem em 16 anos.

 

Na Esplanada dos Ministérios, vendese a idéia de que o mensalão deve ser encarado como uma onda que já passou, foi absorvida na campanha eleitoral e perdoada pelas urnas da reeleição. Mesmo que o maior estrago tenha sido contornado, os muitos recursos que cabem a partir de agora certamente farão com que o processo não seja resolvido antes das eleições de 2010. Ou seja: conclusões sobre a responsabilidade do governo, a inocência ou não de funcionários do primeiro escalão como José Dirceu, o uso indevido de dinheiro público, sobre nada disso deverá haver resposta quando chegar a hora dos debates da sucessão de Lula.

No governo, há, porém, quem enxergue na lentidão da Justiça um alento. O julgamento que terminará esta semana é importante, mas não é conclusivo, lembra um ministro de Lula. Seu argumento é de que os ministros do Supremo ainda não decidiram se os 40 acusados são inocentes ou culpados. E lembra que o STF também aceitou a denúncia feita pelo então procurador-geral da República Aristides Junqueira contra o presidente Fernando Collor e, ao final, acabou inocentando- o. De fato, por enquanto, não há nenhuma garantia de que o STF vá reverter a sua tendência histórica de inocentar políticos e autoridades da República. Mas a constatação de que o PT esteja usando o caso Collor como referência para seus próprios integrantes não deixa de ser um triste fim para a moral da História.

 

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Lealdades? Os grupos que compõem o STF nem sempre votam unidos


 

 

Com exceção de alguns raros casos, como a decisão que obrigou o ex-prefeito Paulo Maluf a devolver o dinheiro dos Fuscas que deu de presente aos jogadores da Seleção Brasileira campeã da Copa de 70, as altas cortes não punem e muito menos mandam para a cadeia autoridades do calibre das que montaram o mensalão. O desafio de pôr fim a essa maré histórica de impunidade apenas se inicia. Advogados se mexerão, encontrarão brechas, buscarão recursos, testemunhas serão ouvidas, no ritmo particular e arrastado da Justiça, e muitos dos crimes poderão ser prescritos antes do julgamento final, o que é um dos principais artifícios da impunidade no País (leia quadro à pag. 32).

No caso das divergências internas do Supremo, os próximos dias permitirão vislumbrar com mais clareza o que muitos políticos dizem ser um jogo entre três grupos informais. O primeiro é ocupado por aqueles que se alinham com o ex-presidente do STF e atual ministro da Defesa, Nelson Jobim. Ali estariam a atual presidente da corte, Ellen Gracie Northfleet, e os ministros Gilmar Mendes, Eros Grau e Cesar Peluso. Em contraponto a eles tem-se o chamado "grupo dos novos", formado por aqueles recentemente indicados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva: Lewandowski, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Carlos Aires Britto. Os dois ministros mais antigos orbitam de forma independente, afastados dos dois grupos, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello. Por coincidência ou não, no primeiro ponto do julgamento do mensalão – a decisão sobre questões preliminares levantadas pelos advogados – os grupos se dividiram. Os "novos" seguiram Barbosa e rejeitaram todas, os antigos e parte do grupo de Jobim fizeram algumas restrições sobre a validade de algumas provas, mas não formaram maioria sobre a questão.

José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares ficam livres da acusação de peculato

A questão maior, contudo, é o preenchimento de uma vaga aberta com a aposentadoria de Sepúlveda Pertence, uma semana antes do julgamento. A conversa eletrônica flagrada entre Lewandowski e Cármen Lúcia menciona "troca" no processo de substituição de Pertence. Políticos e membros do Judiciário fizeram correr a interpretação de que "a troca" envolveria o próprio julgamento do mensalão, a partir dos votos dos ministros que têm mais afinidade com Jobim. A única certeza é que a "troca" era mesmo relacionada à tentativa de que o sucessor de Pertence fosse o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Carlos Alberto Direito, nome preferido de Jobim e do PMDB.

Substituir Pertence por Direito seria uma operação complexa, que exigiria rapidez. E que precisaria contar com a ajuda do próprio Pertence para dar certo. Por lei, os ministros do Supremo são obrigados a se aposentar quando completam 70 anos. No caso de Pertence, isso só aconteceria em novembro. Esse era o seu prazo no STF. Ocorre que há também uma idade-limite para que alguém possa ingressar na corte: 65 anos. Carlos Alberto Direito deixará de ter 64 anos no próximo dia 8 de setembro. Assim, se não vier a ser nomeado e aprovado em sabatina pelo Senado antes disso, ele não poderá virar ministro do Supremo. Ou seja: toda a operação teria que acontecer em menos de dez dias. Essa conjuntura é que teria originado a "troca".

Desde o início do ano, Pertence tem sido pressionado a adiantar o seu pedido de aposentadoria, única forma de permitir a posse de Direito. E resiste a isso por conta da correlação de forças internas no STF. Se Jobim emplacar a nomeação de Direito, este será o quinto ministro na corte alinhado a ele. Ainda que os ministros todos votem a partir das suas próprias convicções e nem sempre

concordem inteiramente com as mesmas teses, o fato de cinco ministros compartilharem uma certa corrente de pensamento jurídico acabaria por garantir a esse grupo muita capacidade de influência numa corte de 11 membros e na qual as decisões são tomadas por maioria dos votos.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva estimulou Pertence a adiar a sua aposentadoria. Lula pediu ao ex-ministro que ficasse mais tempo. Embora Jobim seja seu aliado e ministro, o presidente teme essa capacidade de influência: não quer que a interlocução com o STF tenha que passar inteiramente por Jobim. Quanto mais se aproximava o aniversário de Direito, mais aumentava a pressão sobre Pertence. Até amigos do ex-ministro, como a corretora de imóveis Vera Brant, foram pressionados para convencê-lo a apressar a sua aposentadoria. Tenso, Pertence começou a fumar muito, a sentir taquicardia e reclamava de um mal-estar com alguma freqüência. "Parece que fizeram vodu contra mim", chegou a comentar com um amigo. Uma semana antes do julgamento do mensalão, acabou cedendo. Enquanto isso, a "turma dos novos" atuava também nos bastidores para tentar neutralizar a possibilidade de aumento maior do poder do grupo tido como ligado a Jobim. Tentavam evitar uma operação casada, na qual a saída de Pertence acontecesse ao mesmo tempo que a entrada de Direito. Sem que a operação se concretize, outros ministros do mesmo STJ, como Luiz Fux e Cesar Asfor Rocha, estão prontos para entrar no páreo.

Colaborou Hugo Studart


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