URNAS As mulheres eram enterradas em cerâmicas enfeitadas

A incessante busca pelas peças que decifrem o quebra-cabeça da origem da nossa história levou cientistas a descobrir os costumes e a cultura da sociedade marajoara que habitou o norte do Pará entre os anos 400 e 1400. Dos marajoaras pouco restou. Mas o avanço da ciência contornou as pistas exíguas deixadas por esse povo que possuía habilidades artísticas altamente sofisticadas, e, através de análises químicas, o legado das cerâmicas revela agora como viveu essa sociedade de um milênio atrás – considerada uma das primeiras organizações sociais do Brasil. Quando se fala de marajoaras associa-se imediatamente essa expressão a peças de cerâmica. Pois bem, sabe-se agora também que quando se falar dessas peças será preciso associá-las às mulheres: eram elas as responsáveis por sua confecção. A técnica artesanal era avançada: sabiam escolher a melhor argila e misturavam a matéria-prima a um “tempero” feito com casca de árvore e areia para depois levar a peça ao forno. “O desenvolvimento tecnológico dessa sociedade era muito alto, porque as características da cerâmica são muito sofisticadas”, diz Casimiro Murita, responsável pela pesquisa física e química das obras no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) da USP.

FERNANDO CHAVES

MISTÉRIO Peças foram encontradas com algumas representações de escorpiões e lagartos

Há uma série desses objetos como vasos, urnas funerárias, estatuetas, chocalhos e enfeites para o corpo. Uma das grandes descobertas das pesquisas científicas que acabam de ser reveladas, no entanto, são as tangas que eram produzidas: um pequeno triângulo de argila ornamentado que, preso ao corpo, encobria a região genital. Esse “biquíni” marajoara era atado com fios à cintura e suas cores e padrões determinavam a idade e a classe social da mulher. A arqueóloga Denise Schaan, da Universidade Federal do Pará, acredita que as mais maduras usavam tangas vermelhas e as jovens, brancas. Nas urnas funerárias em que eram sepultadas as mulheres aparecia uma série de desenhos, ausentes nas urnas masculinas. Isso sugere aos cientistas que a organização dessa sociedade se dava pelo matriarcado. “Enquanto os homens saíam para caçar, as mulheres comandavam a vila”, diz Cristina Demartini, pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnografia da USP.

Os padrões na cerâmica refletem a divisão da sociedade em subgrupos. Em algumas obras predominam os relevos; em outras, a pintura. Além de formas femininas, há muitas representações de escorpiões e lagartos estilizados. Impossível saber-se ao certo o significado dessa simbologia, mas os cientistas acreditam que os marajoaras eram xamânicos – provavelmente tratava- se de uma civilização que consumia bebidas alucinógenas, comuns entre os povos da Amazônia, e então evocavam seus deuses. Os diversos padrões na cerâmica sugerem também uma sociedade hierarquizada, tese agora confirmada pela pesquisadora Cristiana: “Para ter uma cerâmica bem desenvolvida, é preciso que haja um excedente de produção. E quanto mais há acúmulo de bens, mais o grupo é dividido e a sociedade estratificada”.

FERNANDO CHAVES

BIQUÍNI Feita em cerâmica, a peça servia para identificar a idade e a classe social da mulher

Essa complexa civilização viveu em um ambiente extremamente inóspito: muito quente e úmido, sujeito a enchentes e com solo pobre. E essa é uma das razões que levavam os marajoaras a construir enormes morros, chamados tesos, para abrigar suas casas. Estima-se que eles dominaram a ilha até o ano 1400. Como essa sociedade desapareceu? Isso ainda é um mistério que apaixona a antropologia. No século XV chegaram à Amazônia os primeiros colonizadores, espanhóis, mas já então o embate se deu com outra população indígena da região – os Tapajós. Na Ilha de Marajó, particularmente, os europeus encontram somente outras tribos culturalmente mais rudimentares. Dos marajoaras só havia a cerâmica e os enormes morros. Os pesquisadores supõem que essa civilização se destruiu em guerras e foi também dizimada devido a períodos de forte carência alimentar devido a um hostil meio ambiente.

A tecnologia que desvenda o passado
Além de etnólogos e arqueólogos, o estudo das peças marajoaras ganhou o reforço de uma nova área de conhecimento: a arqueometria, que pesquisa a composição física e química dos objetos. É essa a ciência que está sendo empregada por pesquisadores da USP há quatro anos para ajudar a montar o quebra-cabeça arqueológico de Marajó. Para desenvolver o estudo arqueométrico, os pesquisadores fazem pequenos furos em fragmentos de cerâmica e recolhem miligramas de pó. O material está sendo analisado no reator nuclear do Ipen que identifica com precisão a química da amostra.