João Loes e Maíra Magro

REALIZADA Voluntária há 20 anos, Clarice Barata convive com o ceticismo dos outros

O altruísmo e a bondade estão em baixa. Hoje, a preocupação com o bem-estar do outro é mais vista com desconfiança ou como sinal de ingenuidade do que como virtude. Essa é a conclusão a que chegaram a historiadora Barbara Taylor e o psicólogo Adam Phillips, autores do livro "On Kindness" (Sobre a Bondade, em tradução livre), publicado nos Estados Unidos recentemente e ainda sem versão em português. Com informações colhidas em estudos de teoria social, psicanálise e registros históricos, eles defendem a importância do altruísmo para a construção de uma sociedade funcional, mas também mostram quanto a noção de bondade foi distorcida e hoje é mais malvista do que entendida como algo positivo. "As pessoas não se esqueceram do valor da bondade, mas perderam a confiança na habilidade própria e na dos outros de serem bons", disse Barbara à ISTOÉ. "A bondade virou sinal de fraqueza."

Rogério Skylab, músico carioca de 40 anos, é um desses desencantados. Para ele, a bondade não se encaixa na equação que rege o funcionamento da sociedade moderna. Skylab acha que o homem bondoso acaba vivendo na sombra daqueles que atropelam dilemas éticos e morais sem peso na consciência. "Hoje quem quer se dar bem tem de se afirmar em um mundo que não acolhe a ideia da bondade desinteressada", filosofa. Para os especialistas, a opinião de pessoas como o músico é fruto da derrocada ideológica e religiosa que o mundo ocidental viveu no século XX. Segundo Ari Rehfeld, professor e supervisor da clínica de psicologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, os eventos marcantes entre os 100 anos que separam 1901 e 2001 gestaram uma legião de céticos. O processo de recrudescimento da desconfiança do homem ocidental começou com as promessas não cumpridas dos regimes políticos como o socialismo soviético, passou pela barbárie do nazismo e culminou com a criação da bomba atômica. "É um conjunto de situações que deixa uma mensagem bastante clara: desconfie do ser humano", diz Rehfeld.

Diante de grandes tragédias, como enchentes e furacões, que deixam milhares de desabrigados, o ser humano sabe ser solidário. Esta generosidade diluída não costuma ser questionada. É diferente, porém, quando a bondade tem um único rosto. Casada e mãe, Clarice Barata, 56 anos, é analista contábil do banco Itaú há 25 anos, onde também faz trabalho voluntário, e aprendeu a lidar com a desconfiança. "É comum acharem que eu quero ganhar alguma coisa ou que estou tirando vantagem quando me ofereço para ajudar", diz. Nesses anos todos de voluntariado, ela viu muita gente desistir do trabalho social por ter de se explicar, repetidamente, aos céticos em relação às boas intenções. "Mas é assim mesmo, quem é voluntário deve estar preparado para isso", afirma.

Um caso recente, porém, chamou a atenção até da experiente Clarice. A desconfiança veio de uma jovem de 15 anos que participa do programa "Clube do Livro", integrado por ela. Na iniciativa, o voluntário acompanha, por telefone, um adolescente na leitura de uma obra. "Entendo que ela já é moça, que tem de estar atenta aos assédios, mas fiquei impressionada com o cuidado dela em não se expor", conta Clarice. É difícil aceitar que vivemos em um mundo onde uma adolescente precisa desconfiar de uma senhora de 56 anos que quer ajudá-la. Nem por isso Clarice desanima. "Não me vejo completa e feliz de outra maneira", diz. Um estudo publicado no Journal of Research in Personality pelo professor Michael Steger, da Universidade de Louisville, nos Estados Unidos, no ano passado, confirma o sentimento de Clarice. Segundo ele, o comportamento altruísta tem mais impacto positivo sobre a percepção que o indivíduo tem de sua própria felicidade do que o hedonista, que busca a satisfação de prazeres exclusivamente pessoais.

O altruísmo teria nascido no tempo dos caçadores e coletores, 200 mil anos atrás, de acordo com uma pesquisa recém-publicada na revista científica Science. "O homem altruísta surge em um contexto de guerra constante por recursos fundamentais à sobrevivência", diz o economista americano Samuel Bowles, responsável pelo estudo. Grupos com indivíduos altruístas – que se solidarizavam com colegas que não eram necessariamente de suas famílias – tinham mais chances de vencer a disputa por uma zona de caça, por exemplo.

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CÉTICO Para Rogério Skylab altruísmo não faz sentido em sistema que premia o egoísmo

Para Ruth Mace, antropóloga da University College London, o peso de uma descoberta como essa não pode ser minimizado. O homem altruís ta descrito pelo estudo de Bowles mostra que se preocupar com o outro e ser generoso pode ter sido uma vantagem evolutiva. "O estudo reabre o debate sobre a área de atuação da evolução", afirma Ruth. "Ela não estaria restrita aos genes de um indivíduo, mas também agiria no comportamento social de um grupo" diz. Em meio à crise de valores pela qual o mundo passa, a historiadora Barbara Taylor, coautora de "On Kindness", vê o momento como uma oportunidade para mudar. "Aos poucos as pessoas veem que deram valor demais ao individualismo e acabaram isoladas e infelizes", diz. Identificar o problema é o primeiro passo em direção à solução.

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