Sessenta anos depois da primeira eleição do general Juan Domingo Perón à Presidência da Argentina, em fevereiro de 1946, as tortuosas relações de seu regime com criminosos de guerra nazistas ainda causam profundo mal-estar no país – algo se melhante ao sentimento perturbador que acomete os franceses quando o assunto é a França sob o regime colaboracionista de Vichy, durante a Segunda Guerra Mundial. Pela primeira vez um livro revela os meandr os da íntima relação entre o peronismo e o nazismo.

Escrito pelo jornalista argentino Uri Goñi, o livro A verdadeira Odessa foi um dos poucos a se aventurar nesse labirinto sinistro. Ele conseguiu ir muito além das especulações ao desvendar a rede montada entre a Casa Rosada (sede do governo), a Igreja Católica em seu país, o Vaticano, a Suíça e até a Cruz Vermelha Internacional. Essa rede possibilitou, entre 1945 e 1950, que a Argentina desse guarida a cerca de 300 criminosos de guerra nazistas e seus colaboradores europeus. Entre os órfãos do III Reich que trocaram as gélidas estepes européias pelas cálidas planícies dos pampas estavam peixes graúdos. E a lista é longa: Adolf Eichmann, executor da “solução final” para o extermínio de milhões de judeus em campos da morte. Joseph Mengele, o médico que fazia experimentos com seres humanos em Auschwitz e apelidado de o “anjo da morte”. Klaus Barbie, chefe da Gestapo conhecido como “carniceiro de Lyon”. Ante Pavelic, líder do governo católico-fascista da Ustacha, na Croácia. Erich Priebke, oficial da tropa de elite SS que comandou o massacre de 335 civis italianos em 1944. Dinko Sakic, comandante do campo de concentração Jasenovac, na Cróacia, onde 600 mil prisioneiros foram massacrados. Joseph Schwamberber, responsável pela morte de 15 mil judeus em campos da Polônia. E Gerhard Bohne, chefe do programa de eutanásia de Hitler.

O título do livro de Goñi foi inspirado no romance O Dossiê Odessa, do popular escritor inglês Frederick Forsyth. Nesse romance, um grupo de antigos oficiais das SS se reúne numa organização secreta chamada Odessa para resgatar antigos camaradas de armas foragidos – o objetivo era criar um IV Reich. Em mais uma demonstração de que a realidade, às vezes, consegue superar a ficção, Goñi revela, baseado em vasta documentação, que Perón e o Vaticano foram os responsáveis pela criação da “verdadeira” Odessa, uma extensa rota de fuga montada para garantir a sobrevivência de centenas de criminosos de guerra nazistas nas bandas do rio da Prata. Embora os arquivos argentinos sobre o período tenham sido destruídos em duas fases (em 1955, antes da deposição de Perón, e em 1996, sob a batuta do governo peronista de Carlos Menem), Goñi conseguiu montar o quebra-cabeça pesquisando em arquivos da inteligência dos EUA, da Cruz Vermelha Internacional e de países europeus.

Bloco pró – Eixo As relações de Perón e de parte da oficialidade do Exército argentino com o nazi-fascismo datam dos anos 1930. Os militares acreditavam na vitória do Eixo e sonhavam em construir um bloco sul-americano liderado pela Argentina e aliado do III Reich – se necessário, fomentando golpes de Estado nos países vizinhos. A partir de 1943, quando tomou o poder o Grupo de Oficiais Unidos (GOU) formado por coronéis nacionalistas liderados por Perón, os agentes alemães da SD (divisão de inteligência exterior das SS) passaram a agir com desenvoltura na Argentina. Os nazistas ajudaram inclusive os militares argentinos a organizar um golpe de Estado na Bolívia, ainda em 1943. Os coronéis do GOU foram tão longe em seu alinhamento com o III Reich que a Argentina só abandonou sua “neutralidade” no conflito em março de 1945, declarando guerra à Alemanha um mês antes do suicídio de Adolf Hitler. Mas não se tratava de rompimento com os antigos aliados. “Apesar de, à primeira vista, parecer contraditório, a Alemanha se beneficiaria com a nossa declaração de guerra: se a Argentina se tornasse um país beligerante, teria direito a entrar na Alemanha quando tudo acabasse. Isso significava que os nossos aviões e navios estariam em condições de prestar um grande serviço (…) Nós informamos os alemães que iríamos declarar guerra para salvar vidas. Foi assim que um grande número de pessoas conseguiu entrar na Argentina”, disse o próprio Perón em 1970.

A operação para salvar criminosos de guerra teve início nos últimos dias do conflito através de dois argentinos de dupla nacionalidade: um deles era o alemão nascido na Argentina Carlos Fuldner, ex-capitão da SS, que desembarcou em Madri em 1945 para sondar o terreno. De lá, partiu para Buenos Aires. Em 1948 retornou à capital espanhola como agente especial de Perón. Montou escritórios de resgate em Gênova e Berna e, para facilitar a passagem clandestina de ex-nazistas para a Argentina, estabeleceu ligações com o Vaticano e com funcionários suíços. O outro é o criminoso de guerra Charles Lesca, francês nascido na Argentina, que conheceu Perón nos anos 1930. Ele organizou em Madri a primeira rota de fuga para a Argentina de agentes das SS. Na Casa Rosada, o esquema era dirigido pelo germano-argentino Rodolfo Freude (Rudi), secretário particular de Perón que controlava o serviço secreto da Presidência. Rodolfo era filho do empresário alemão Ludwig Freude, radicado na Argentina, ligado à inteligência nazista e responsável pela arrecadação de fundos de empresários pró-nazistas para a campanha de Perón em 1946.

O esquema argentino foi complementado no final de 1946 quando a Igreja
Católica começou a montar uma rede com o objetivo de ajudar especificamente colaboradores e fascistas católicos (franceses, belgas e croatas) a se abrigarem
na Argentina. Nesse esquema teve um papel fundamental o padre e criminoso
de guerra croata Krunoslav Draganovic, que operava em Roma na igreja de San Girolamo. O Vaticano era encarregado de dar passaportes com nomes falsos
aos fascistas em fuga. Alguns recebiam até dinheiro de padres e de bispos.
Através da Santa Sé, os trânsfugas do “Reich de mil anos” obtiveram passaportes da Cruz Vermelha. O trabalho do Vaticano ganhou alento a partir de 1947 quando
os americanos deixaram de lado o interesse em capturar nazistas e levá-los a julgamento. Com a guerra fria, os países ocidentais abandonaram esse objetivo, especialmente em relação aos criminosos croatas, tchecos e de outros países
que caíram na órbita soviética. “Para o papa e aliados ocidentais, salvar colaboradores nazistas e assassinos das SS para não extraditá-los a países
com governos comunistas era parte de um pacote destinado a fazer avançar a agenda anticomunista que ambos partilhavam”, diz Goñi. O papa, diga-se, era
Pio XII, o mesmo que foi acusado de ter feito vista grossa ao extermínio de judeus durante a guerra.

Seqüestro – Mesmo depois da queda de Perón, que se exilou na Espanha franquista, os criminosos nazistas continuavam a viver tranqüilamente na Argentina. Essa tranqüilidade perdurou até 1960 quando um comando do Mossad (serviço secreto israelense) seqüestrou Adolf Eichmann em Buenos Aires e o levou para Jerusalém – lá foi julgado e enforcado. O médico Joseph Mengele foi para o Paraguai e depois veio para o Brasil, onde morreu em 1979, afogado numa praia de Bertioga. Sua ossada foi identificada pela Polícia Federal brasileira em 1985. Klaus Barbie, o “carniceiro de Lyon”, instalou-se na Bolívia, onde ajudou a formar esquadrões da morte. Com a volta da democracia naquele país, Barbie acabou preso e foi extraditado para a França. Condenado à prisão perpétua em 1987, morreu no cárcere em 1991. O ex-SS Erich Priebke foi descoberto por uma equipe de tevê e extraditado em 1995 para a Itália, onde foi condenado à prisão perpétua.