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TENSÃO Soldados equatorianos desembarcam perto do lugar onde uma base das Farc foi bombardeada: “Um buraco num prato de brócolis”

O cala-boca do rei Juan Carlos da Espanha correu o mundo, mas Hugo Chávez não aprendeu a lição. “Por que não te calas?”, perguntou o monarca, em Santiago do Chile, em novembro, quando o presidente da Venezuela insistiu em apontar sua metralhadora verbal contra um antigo primeiro-ministro espanhol. Na semana passada, a verborragia de Chávez fez disparar o nível de tensão de uma crise sem precedentes entre Colômbia, Equador e Venezuela. “Uma incursão militar na Venezuela seria causa de guerra”, bradou Chávez, dirigindo-se ao presidente da Colômbia, Alvaro Uribe. Naquele momento, o Equador ainda esboçava reação ao ataque desfechado por Uribe a um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em território equatoriano. A operação culminara com a morte de Raúl Reyes, o número 2 na cadeia de comando das Farc, além de outras 22 pessoas.

Pouco depois da menção a uma possível guerra, em seu programa dominical Alô, Presidente, Chávez determinou o fechamento da embaixada da Venezuela em Bogotá e o envio de dez batalhões para a fronteira com a Colômbia. “Batalhões de tanques”, ressaltou, diante da platéia vestida como ele, de vermelho. Pela pouca mobilidade, tanques não são adequados para áreas de selva, mas o detalhe foi relevado, em nome da retórica. Na seqüência, Chávez decidiu qualificar Uribe: agressor, cachorro, criminoso, gângster, terrorista e lacaio do império, em referência à aliança entre Colômbia e Estados Unidos.

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

ALTA TENSÃO Correa pede apoio de Lula (acima), enquanto Chávez (à esquer.) aguça a crise e aparece em documento que a Colômbia divulgou e garante ser de Raúl Reyes, das Farc (abaixo)

À noite, foi a vez de o presidente do Equador, Rafael Correa, alinhar sua postura à de Chávez. Chamou Uribe de mentiroso, expulsou o embaixador colombiano de seu país e também anunciou o deslocamento de tropas para sua fronteira norte. “O território equatoriano foi ultrajado e bombardeado por um ataque aéreo e posterior incursão de tropas estrangeiras”, denunciou. Uma guerrilheira que sobreviveu ao ataque por estar amarrada nas imediações, cumprindo um castigo, contou que eram duas horas do sábado quando aviões começaram a despejar bombas (leia quadro à pág. 84). Quatro dias depois, vista do alto, a clareira no meio da selva parecia “um buraco num prato de brócolis”, em descrição feita pelo coronel equatoriano José Nuñez à Folha de S. Paulo. Será preciso fazer exame de DNA para identificar todos os mortos, mas há indícios de que entre eles estão professores e estudantes de uma universidade mexicana.

MIRAFLORES/EFE

NARCOGUERRILHA
Logo depois do ataque, militares colombianos alcançaram por terra o acampamento destruído e recolheram objetos, além de dois corpos: o de Raúl Reyes e o de Julián Conrado, um dos ideólogos das Farc. De acordo com o general Óscar Naranjo, diretor-geral da polícia da Colômbia, entre o material que resistiu ao bombardeamento estão computadores. Um documento na memória de um deles “traz implícita não apenas uma proximidade, mas uma aliança armada entre as Farc e o governo da Venezuela”. Esses arquivos, segundo o general, comprovam que Chávez fornecia todo tipo de apoio ao grupo nascido em 1964 como braço armado do Partido Comunista, que, a partir dos anos 90, aliou-se a narcotraficantes e incluiu em sua cartilha práticas de extorsão e seqüestro. Assim, as antigas suspeitas de que o presidente venezuelano cede território para bases das Farc e repassou US$ 300 milhões para o grupo foram reforçadas pelas informações que o general Naranjo garante ter encontrado nos computadores e pela reação belicosa de Chávez.

Além de defender as Farc, a Chávez interessa manter a tensão em seu entorno, já que ele enfrenta uma série de problemas internos, como inflação alta e descontentamento ALTA TENSÃO Correa pede apoio de Lula (acima), enquanto Chávez (à dir.) aguça a crise e aparece em documento que a Colômbia divulgou e garante ser de Raúl Reyes, das Farc (abaixo) social. Por sua estratégia, quando se tem problemas em casa, nada melhor do que encontrar um inimigo externo, assim como a Junta Militar argentina fez em 1982, antes da Guerra das Malvinas. A tensão também interessa a Uribe. Com o apoio do governo americano, que oferece assistência militar e destina anualmente US$ 600 milhões para o programa de combate ao narcotráfico da Colômbia, Uribe não está interessado em negociar. Ele quer acabar militarmente com as Farc. Dessa forma, a bomba que matou Reyes teve precisão cirúrgica. Acertou o principal negociador da guerrilha, que manteve contatos inclusive com emissários do presidente francês Nicolas Sarkozy, para tratar do caso da franco-colombiana Ingrid Betancourt, a ex-senadora refém das Farc há mais de seis anos.

A alta tensão na área foi amenizada depois de uma reunião de emergência da Organização dos Estados Americanos (OEA), mas persiste. Além de continuarem as escaramuças verbais entre os presidentes da Colômbia, do Equador e da Venezuela, o governo Uribe acusou as Farc de explodir um gasoduto do país na quinta-feira 6. Esse clima conturbado, com possibilidade de intervenção pela força, pode comprometer o equilíbrio da região. A ameaça ocorre justamente quando países de governos moderados, como o Brasil, Chile, Argentina, Uruguai e Peru vivem seu melhor momento de estabilidade econômica e política em décadas.

ENVOLVIMENTO CONSTRANGEDOR
Nesse cenário, o Brasil surgiu como promessa de liderança da região, ao exortar a criação de uma comissão arbitral na OEA e tratar pessoalmente com os envolvidos no episódio. Deu certo. Mas o modo como a política externa brasileira foi desempenhada foi frustrante em seu objetivo maior. O País continua sem conseguir antecipar o que se passa em seu quintal. “Este conflito é uma das maiores derrotas históricas do Brasil em sua política de união sul-americana”, analisa o argentino Juan Gabriel Tokatlián, professor da Universidade de San Andrés. “O episódio mostrou até que ponto chegou a liderança do Brasil, que não antecipou a disputa e não parece ser capaz de frear as ingerências de Chávez nos outros países.”

Na terça-feira 4, um constrangido Celso Amorim convocou uma coletiva de imprensa para relatar o ponto de vista do Brasil sobre o conflito. As críticas à invasão territorial pela Colômbia foram bem conduzidas. Mas, perguntado sobre a pressão que Chávez vinha fazendo ou a respeito da classificação das Farc como organização terrorista, Amorim esquivouse. “Vamos resolver uma coisa de cada vez”, disse.

A raiz dessa negativa é o Foro de São Paulo, uma entidade ligada ao Partido dos Trabalhadores. Fundado em 1990 pelo PT e outras organizações esquerdistas da América Latina para discutir caminhos socialistas, o Foro tem entre seus membros nomes como Hugo Chávez, Rafael Correa, Marco Aurélio Garcia e Raúl Reyes, o guerrilheiro morto na operação colombiana. “É, no mínimo, constrangedor classificar como terrorista uma organização que tem entre seus membros pessoas de seu círculo pessoal”, disse à ISTOÉ Raúl Baduel, ex-ministro da Defesa de Chávez. “Enquanto houver membros do Foro no governo brasileiro, a postura sobre as Farc não se alterará.”

INFOGRAFIA: FERNANDO BRUM