Conheci Raúl Reyes em janeiro de 1999, quando o governo do então presidente colombiano Andrés Pastrana iniciava negociações de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Eu e o então repórter fotográfico Alan Rodrigues fomos os únicos jornalistas a ter acesso ao acampamento secreto montado pelo QG da guerrilha no sul da Colômbia, próximo à fronteira com o Equador, onde se instalou quase toda a cúpula das Farc. ISTOÉ foi o único veículo – na época e até hoje – a entrevistar o líder das Farc Manuel Marulanda, o “Tirofijo” (tiro certeiro), o guerrilheiro há mais tempo em atividade no mundo. Há nove anos, as Farc ocupavam uma área de 42 mil quilômetros quadrados – a “Farcolândia” –, desmilitarizada pelo governo colombiano para que as conversações fossem realizadas.

A barraca de Reyes ficava próxima ao setor de comunicações do acampamento, no lado oposto à de Tirofijo. Como quase todos os guerrilheiros, Reyes não se separava nem por um minuto de sua arma, um rifle M-16 de fabricação americana, que ele levava a tiracolo. Mesmo na hora do banho, o rifle sempre ficava ao alcance das mãos. Logo no segundo dia de nossa estadia entendemos o porquê de tanta obsessão. Eram cerca de 10 horas da manhã quando o acampamento foi surpreendido pelo ronco ensurdecedor de um helicóptero. Foi um pandemônio: guerrilheiros correndo por todos os lados, apontando as armas para cima. Uma poderosa metralhadora M-60 foi rapidamente posicionada. Através de binóculos, Reyes observava calmamente o helicóptero, enquanto outro comandante, Fabián Ramírez, rádio em punho, fazia contato com a aeronave através do sistema de comunicação do acampamento. “Diga para eles se afastarem, senão vamos derrubálos!”, ordenou Reyes. “Eles são da comissão de paz, mas não sabemos quem está a bordo. Se não voltarem, vamos derrubá- los!” Depois de alguns minutos de extrema tensão, o helicóptero se retirou.

ALAN RODRIGUES/AG. ISTOÉ

ENCONTRO O jornalista Cláudio Camargo (à esq.) e o guerrilheiro Raúl Reyes no acampamento da guerrilha em 1999

Raúl Reyes era um propagandista habilidoso e jamais falava sem medir as palavras, como Tirofijo, principalmente na presença de jornalistas. Marulanda nos disse, sem pestanejar, que os guerrilheiros peruanos do Tupác Amarú, que tinham seqüestrado 400 diplomatas na embaixada do Japão em Lima em 1997, deveriam ter logo executado uns dez reféns “para mostrar que não estavam brincando”. Reyes, ao contrário, sabia “vender” os argumentos da guerrilha para o público externo. Em aparente contradição com o discurso extremista das Farc, Raúl Reyes dizia apostar no Mercosul como fator de integração da América Latina e defendia a necessidade de uma aliança tácita do subcontinente com a União Européia para servir de contraponto à hegemonia americana. Lembrome de como Marulanda ficou pasmo quando Reyes lhe explicou o nascimento do euro e vaticinou que um dia a futura moeda européia competiria com o dólar americano. Reyes recorria à lógica diplomática para negar que as Farc treinassem militantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) ou que fizessem incursões em território brasileiro. “Queremos manter boas relações com o Brasil”, disse. “Buscamos o reconhecimento das Farc como força beligerante por governos como o brasileiro. Além do mais, com tantos problemas e inimigos que temos aqui, seria burrice arrumarmos encrencas com outros países”, concluiu. Na mesma linha, teceu considerações elogiosas ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, a Lula e ao PT, enfatizando a opção eleitoral deste último. “Você está muito em cima do muro para um guerrilheiro”, provocamos.

Tentando fugir ao estereótipo de intelectual, Reyes dava atenção a aspectos cotidianos do acampamento. Ele disse que todos os comandantes das Farc tinham uma cozinha própria, para evitar o risco de envenenamento. Mostrou um fogão que quase não emitia fumaça, para não despertar atenção no meio da selva. Era uma espécie de tambor enterrado. “É tecnologia vietnamita que importamos”, disse. Explicou que as mulheres são atiradoras mais eficientes do que os homens, além de serem mais calmas, e por isso a segurança pessoal dos comandantes era majoritariamente feminina. O porta-voz das Farc também dizia gostar de futebol. Uma noite, depois do noticiário da televisão das 19 horas, enquanto a maioria discutia política, ele fez uma observação sobre Ronaldo Fenômeno, então conhecido simplesmente como “Ronaldinho”: “Esse brasileiro é espetacular. Depois de Pelé, é o melhor do mundo”, opinou.

Raúl Reyes não se abalava com a acusação de envolvimento das Farc com o narcotráfico, que classificava como “invenção do imperialismo norte-americano.” De baixa estatura, barba rala grisalha e óculos, ele tinha o physique du rôle do guerrilheiro latino-americano clássico. Mas sua visão de mundo, embora aprisionada à lógica de ferro de um marxismo ultrapassado, parecia ir além da mentalidade de cerco predominante na maioria da direção das Farc. Afável e conversador, ele falava mais como um social-democrata radicalizado do que como um comandante guerrilheiro. Seu pragmatismo contrastava fortemente com o militarismo à outrance de um Mono Jojoy, chefe militar das Farc. Reyes justificava os seqüestros e extorsão de figurões como “arma de luta política”, embora evitasse dar ênfase a eles. O ex-sindicalista dizia ter muita expectativa nas negociações de paz e citava o líder palestino Yasser Arafat. Reyes tinha sido um dos organizadores da União Patriótica (UP), o braço político das Farc formado nos anos 80, quando o governo propôs que as guerrilhas depusessem as armas para se integrar à política institucional. O assassinato de cerca de três mil militantes da UP por paramilitares de extrema direita fechou a possibilidade de inserção democrática das Farc.

Por ironia do destino, foi essa disposição para o diálogo que levou Raúl Reyes a ser morto pelo governo colombiano. Ele era o principal negociador das Farc e a face mais visível e palatável de uma guerrilha cada vez mais violenta e bandoleira. Uma negociação exitosa em torno dos reféns traria louros para Hugo Chávez, para as Farc, mas colocaria em xeque a política de confronto do presidente Alvaro Uribe.

Não sei se nos últimos anos Reyes reviu algumas de suas posições “moderadas” ou se se manteve fiel a elas. Suspeito que, com o fracasso das negociações de paz e a ascensão do linha-dura Uribe, ele tenha se alinhado aos ultras da guerrilha. Mais cosmopolita que seus pares, o número dois das Farc possivelmente se sentia num beco sem saída. Só posso especular, mas talvez ele tivesse chegado à conclusão de que não teria a mesma sorte que Yasser Arafat, um terrorista que abandonou a luta armada, fez a paz com o inimigo (Israel), chegou ao poder e ganhou o Nobel da Paz.