Hoje tem marmelada. Amanhã, um passe de mágica pode fazê-la desaparecer. O maior espetáculo da Terra caminha a passos trêmulos sobre a corda. O ano começou com a notícia do fim do Circo Garcia, o mais tradicional do País, vencido por uma dívida de R$ 1 milhão após 75 anos de atividade. Um mês após o último espetáculo, artistas, funcionários e animais ainda buscam novas maneiras de tocar a vida e assistem de camarote à comoção nacional desencadeada. O palhaço Reco-Reco, um dos astros da companhia, resolveu animar festas de criança. O locutor Ari Rabelo, há 30 anos no grupo, colocou seu trailer à venda e montou com os filhos a Equipe Alegria. “Minha filha faz malabarismo com os pés e meu garoto é mágico. Vamos trabalhar em eventos”, espera o artista de 58 anos.

Baixar a lona e levantar acampamento é rotina na vida dos artistas circenses: há sempre uma nova cidade à espera. Desta vez é diferente. O alto custo do combustível, dos pedágios e dos terrenos – alugados por uma quantia nunca inferior a R$ 8 mil por mês – e o baixo poder aquisitivo do público tornaram inviável a continuidade do circo. “Em 1995, cobrávamos R$ 15 pelo ingresso, enquanto o cinema custava R$ 5. No ano passado, baixamos nossa entrada para R$ 10 e o cinema subiu para o mesmo preço”, compara a proprietária Andrea Françoise Carola, 66 anos. A situação das outras companhias é semelhante. Muitas fecharam as portas, como o Circo Vostok há dois anos. Outras resistem, com uma equipe até três vezes menor.

O presidente da Associação Brasileira de Circo (Abrac), José Wilson Moura Leite, avalia que, nos anos 70, havia mais de duas mil companhias circenses espalhadas pelo País. Hoje, não passam de 300. A administração familiar encontrada na maioria delas dificulta a mobilização da categoria e a busca por incentivos. “Todo município possui um estádio de futebol, mas nenhum disponibiliza gratuitamente um terreno com água, luz e esgoto para as companhias circenses. Nós não temos sequer isenção para os pedágios. Os espetáculos acabam enfraquecidos”, explica ele. Leite culpa o governo. “Se fosse um banco, o BNDES já teria injetado grana. Ninguém mexe uma palha para levantar o Garcia, nosso maior patrimônio circense”, reclama.

O secretário Nacional de Música e Artes Cênicas, Sérgio Mamberti, se defende. “A falência do Garcia nos comoveu. A primeira coisa que cogitei foi arcar com a dívida, mas R$ 1 milhão quebraria o Ministério da Cultura. Também não poderíamos adotar uma atitude paternalista para com o Garcia e negar os mesmos benefícios aos outros circos”, justifica. O secretário tem na gaveta uma lista de intenções, debatidas em um fórum com a categoria em 2001. Ali estão projetos para garantir a disponibilidade de terrenos, desobrigar os circos à obtenção de um alvará para cada terreno ocupado e até isentar as companhias do pagamento de pedágios. “O problema é que não existe uma política para o circo no Brasil. Precisamos inventá-la”, diz Mamberti, que prevê parceria com os ministérios das Cidades, da Educação e da Promoção Social. “Os circos têm um papel social importante. Recebem gratuitamente crianças carentes e estão dispostos a realizar oficinas nas cidades por onde passam. Ao viajar pelo País, os circos desenvolvem um intercâmbio cultural e conseguem energizar as comunidades do Brasil profundo. Aí faz sentido falar em do-in antropológico”, completa o secretário. O diretor da Escola Nacional de Circo (órgão ligado à Funarte), Carlos Cavalcanti, acena para o mesmo problema. “No Rio de Janeiro, a Praça Onze é obrigada a receber companhias circenses durante pelo menos seis meses. Espaços como esse deveriam existir no País inteiro. Não temos sequer uma legislação sobre o uso de animais”, reclama.

Após 50 anos de trabalho no Garcia, Andrea Carola colocou os quatro tigres e os dois elefantes à venda. Cada elefante tem preço estimado em US$ 150 mil. Desde 1982, quando a captura de animais selvagens foi proibida em consenso internacional, as feras domesticadas são tratadas como jóias raras. Mais do que resultado de uma postura politicamente correta, o principal motivo da proliferação de circos sem animais foi a escassez de bichos no mercado: só é permitido obter animais nascidos em cativeiro, e os
preços são normalmente proibitivos. A tendência foi incentivada
por projetos de lei que tentam proibir mamíferos de grande porte
em espetáculos circenses e fazem coro com as campanhas promovidas por organizações de defesa dos animais. “Dizem que os animais de
circo são maltratados. Meus elefantes ficam meia hora no picadeiro, enquanto na Tailândia, onde foram comprados, passam oito horas
por dia derrubando árvores. Os chimpanzés vivem 45 anos e só
trabalham durante quatro”, compara dona Andrea.

Seu circo é considerado o maior procriador de chimpanzés do Brasil. Com a falência, os 23 exemplares tiveram de ser transferidos para o sítio de uma amiga da proprietária. Ao contrário dos tigres e elefantes, os macacos não estão à venda. “Não posso vender meus filhos e netos”, exagera dona Andrea. Um deles, o Lucas, tem cinco meses e dorme na sala de seu trailer. Quem visita o circo antes do espetáculo costuma
se espantar com os cuidados dedicados aos macacos. “Na primeira vez que fui ao Garcia, encontrei dona Andrea com um chimpanzé no colo.
Ele vestia fraldas e tomava mamadeira de leite Ninho. A mesma
cozinheira que prepara a alimentação dos artistas e funcionários
cuida da alimentação dos macacos”, conta a jornalista e fotógrafa Fernanda Prado. Aos 22 anos, Fernanda conhece como poucos a intimidade do Circo Garcia. Entre maio e novembro de 2001, visitou
mais de dez vezes a trupe e compôs um acervo de 1.100 fotografias. Agora, prepara o livro Vida de circo – realidade e fantasia, no qual combina imagens coloridas e em preto-e-branco.

Por enquanto, quem tem financiado a alimentação dos bichos é o empresário João Batista Sérgio Murad, o Beto Carreiro. Ele, provavelmente o maior dono de circos do País, mantém uma companhia circense e franquia seu nome para outras duas. “Hoje, todo mundo fala que circo de Primeiro Mundo não tem animais. Isso é um equívoco”, garante. Ele tem razão. O maior circo dos Estados Unidos, o Ringling Bros, é famoso por suas feras. Na Europa, todos conhecem o Circo Nacional Suíço, do célebre domador Franco Knie, que arrebatou o coração da princesa Stéphanie de Mônaco. Até o canadense Gilles Ste-Croix, fundador e ex-diretor artístico do Cirque du Soleil – o mais festejado circo moderno –, estreou há dois anos o espetáculo Cheval, totalmente dedicado a malabarismo sobre cavalos.

Modernidade – Desde sua fundação, em 1984, o Cirque du Soleil arranca elogios e aplausos pela maneira inédita de tratar o espetáculo circense. Em vez de leões enjaulados e globo da morte, a trupe investe nas coreografias, compondo um espetáculo pop de luzes e movimentos. Até Beto Carreiro resolveu correr atrás da modernidade e, sem abrir mão dos animais, municiou seu circo com um corpo de balé e um show de raio laser. Ele acredita que apenas patrocínio e merchandising podem tirar o picadeiro da crise. “Meu circo é sustentado pelo parque temático. Sem ele, também estaria falido”, revela o dono do Beto Carreiro World. “O Ringling pertenceu à Mattel durante anos e agora é financiado por empresas como Sears, Coca-Cola e BankBoston. O faturamento do Cirque du Soleil vem quase todo da venda de suvenires e de contribuições da iniciativa privada”, assinala. Em outros países, é o governo quem se dispõe a financiar a arte circense. Na China e na Suíça, as maiores companhias são estatais. Na França, 1% da arrecadação é destinada aos circos.

Curiosamente, a crise nas companhias brasileiras é acompanhada por um fenômeno de busca do resgate da cultura do picadeiro. É cada vez maior o grupo de jovens matriculados em cursos de artes circenses. Enquanto o número de circos caiu de dois mil para 300 nos últimos 20 anos, o número de circos-escola saltou de dois para 40. Muitos alunos são absorvidos pelas companhias internacionais. Outros apelam para figuração em shows ou para os bufês infantis – atualmente, os maiores cabides de emprego dos circenses desempregados ou daqueles que desistem da vida no circo. Filho de uma ex-equilibrista, Fábio Fonseca, 30 anos, passou a juventude jogando malabares no circo Stevanovich (atual Le Cirque). Há alguns anos, ganha a vida entre balões coloridos e entretém a garotada com um número de malabarismo com 12 cachorros. “Deixei a trupe numa época em que as festas infantis começavam a despontar. Hoje faço quase 30 números por mês. O mercado é a salvação da maioria dos atores que deixam o picadeiro e dos alunos que saem das escolas de circo”, garante. Resta torcer para que o espetáculo nunca termine.