Quando se posta diante do adversário, Gary Kasparov, o melhor jogador de xadrez do mundo, representa uma pantomima inconfundível. Os gestos súbitos, a agressividade dos lances e a arrogância ostensiva são movimentos planejados com minúcia. Dono de um afiado raciocínio analítico e de uma capacidade ímpar para enervar seus rivais, o enxadrista radicado em Moscou tem noção de que sua excentricidade é uma arma na batalha psicológica contra seus oponentes. Foi assim, numa autêntica guerra de nervos, que ele destronou o russo Anatoli Karpov, em 1985, para se tornar o mais jovem campeão mundial, aos 22 anos. Seu arsenal intelectual pode ser determinante nos embates normais, mas é inútil contra os inimigos de hoje, os computadores.

O último episódio dessa saga entre o ser humano e a inteligência
artificial chegou ao fim na sexta-feira 7. Foram seis partidas dispu-
tadas por 12 dias em Nova York, a mesma cidade onde, há seis anos, Kasparov foi subjugado pela primeira vez por um cérebro eletrônico, o supercomputador Deep Blue (Azul Profundo). O monstro da IBM pesava 1.400 quilos, tinha 418 processadores e seus circuitos analisavam 200 milhões de jogadas por segundo. Dessa vez, Kasparov enfrentou uma versão dietética, o Deep Junior, programa criado por pesquisadores israelenses para ser um jogo de computador. Equipado com oito processadores, ele analisa três milhões de jogadas por segundo. No confronto batizado pela Federação Internacional de Xadrez como
a primeira disputa “oficial” entre o ser humano e a máquina, os inimigos se enfrentaram de igual para igual.

Na sexta e decisiva partida do jogo, um agravante para o supersticioso Kasparov. O computador tinha a vantagem de jogar com as peças brancas. Exatamente como aconteceu no fatídico maio de 1997, quando a máquina da IBM derrotou em 19 jogadas o gênio indomável do Azerbaijão. Na disputa deste ano, o jogador estava disposto a não repetir a história. “Eu tinha um único propósito, o de não perder”, explicou.

Os lances finais da partida deixaram revoltada a platéia de Nova York, que acompanhava o espetáculo. Depois de um início agressivo, Kasparov entregou os pontos e pediu um empate na 23ª jogada. A platéia vaiou, enquanto os programadores Amir Ban, Shay Bushinsky e o mestre Boris Alterman – os criadores do Deep Junior – se reuniam para decidir ir em frente. Bastaram cinco lances para que os pais do cérebro eletrônico mudassem de idéia, aceitando o empate.

Se fosse uma partida contra outro ser humano, Kasparov reconhece que teria arriscado a chance de ganhar, em vez de se contentar com o resultado cauteloso. A infalibilidade e a rapidez de raciocínio do computador foram determinantes para o resultado do desafio, que rendeu US$ 500 mil a cada participante, e um extra de US$ 250 mil a Kasparov. “Muita gente me criticou por aceitar o empate. O desagradável é que meu adversário não estava sujeito à fadiga nem a qualquer outra emoção”, disse Kasparov. No confronto entre a intuição humana e a força bruta dos cálculos matemáticos, valeu a prudência. “Foi a primeira partida puramente científica, em condições justas tanto para o jogador humano quanto para a máquina”, analisa o jogador.

No fundo, disputar contra a máquina é o mesmo que um halterofilista medir forças com um guindaste. Uma luta inglória a longo prazo. “Jogar contra o computador é como jogar contra você mesmo. Um erro pode ser fatal”, explica Herman Claudius van Riemsdijk, holandês naturalizado brasileiro que trombou com Kasparov pela primeira vez em 1980. “Disputar contra a máquina é mais demonstração científica do que esporte”, explica o enxadrista que já representou o Brasil em 12 olimpíadas e foi três vezes campeão nacional.

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Aos 39 anos – e 34 deles dedicados ao exercício do tabuleiro –, Kasparov acostumou-se a entrar nas disputas
não como um esportista com motivação artística, mas com a fúria de quem procura a jugular para desferir um
golpe fatal no inimigo. “Ele joga do mesmo jeito que anda, feito um trator. Parece um animal selvagem enjaulado”, compara Herman Claudius.

Apesar dos detratores, Kasparov permanece o jogador número 1 no mundo há 18 anos, depois de
passar uma década invicto, sem perder uma mísera partida. À altura de sua genialidade, só mesmo as máquinas e o jogador russo Vladimir Kramnik, 27 anos, seu ex-pupilo, que em 2000 roubou do mestre
o título de campeão mundial. A alegria de Kramnik durou pouco. Em outubro do ano passado, num campeonato em Bahrein, o ex-aluno
de Kasparov enfrentou um primo do Deep Junior, o computador alemão Deep Fritz. O jogo de US$ 1 milhão começou com duas vitórias de Kramnik, mas terminou em empate.

Com sua habitual falta de modéstia, Kasparov escreveu um artigo
sobre sua disputa memorável contra a máquina de Israel. “Durante
50 anos, criar um computador de xadrez para vencer o campeão
mundial foi quase uma obsessão da comunidade científica. Meu jogo contra o Deep Junior é o começo de uma nova era para o xadrez”,
avalia o jogador, que até hoje não se conforma com a recusa da
IBM em oferecer uma revanche para que ele pudesse derrotar o supercomputador Deep Blue. Coisas de gênio.


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