Até poucos anos atrás, o genoma,
ou conjunto do material genético de
um ser vivo, era um termo pouco conhecido fora das universidades.
Em 1989, o então presidente George Bush, o pai, durante um discurso na Casa Branca, descreveu o processo
de sequenciar os genes como “iniciativa do Gnomo Humano” (Human Gnome,
em inglês). Desde então, muita coisa aconteceu. Em 1990, cientistas iniciaram o projeto de sequenciar
todas as bases do genoma do homem. E, em junho de 2000, os pesquisadores americanos Craig Venter e Francis Collins anunciavam
a finalização do gigantesco mapeamento.

A partir daí, a leitura do genoma de outras espécies ganhou fôlego, em um processo que ocorre em todos os ramos da tecnologia: com o passar do tempo, as máquinas se tornam cada vez mais rápidas e os custos, menores. Hoje, uma lista com todos os seres vivos cujos genes foram mapeados, ou se encontram em processo de análise, é interminável. Nela estão incluídos o camundongo, o arroz, o tomate, a soja, a galinha, o mosquito, e assim por diante.

Na época da finalização do genoma humano, 33 espécies haviam sido sequenciadas. Agora, são cerca de 100 projetos completos e mais de 600 em andamento. A Escola de Medicina Baylor, nos EUA, por exemplo, anunciou o início do sequenciamento da abelha. No Brasil, um consórcio de universidades promete também finalizar o genoma do guaraná, um produto tipicamente brasileiro. “Um dia, acho que não teremos mais nada para sequenciar”, brinca Neil Hall, pesquisador do instituto Sanger, no Reino Unido. “Mas isso ainda deve demorar.”

Hall foi um dos cientistas de um consórcio internacional que apresentou, no final do ano passado, os genomas do mosquito Anopheles gambiae e do P. falciparum, parasita causador da malária, no que foi considerado um passo importante no combate à doença. “Espero que, após sequenciarmos os genes de organismos importantes à medicina, comecemos a estudar as espécies incomuns, como as bactérias que vivem em muitas profundidades”, conta. “Existem grandes partes da biologia que continuam desconhecidas, e a genômica poderia nos esclarecer muito sobre isso.”

Essa febre pela análise dos genomas teve, nos últimos anos, participação ativa do Brasil. Em julho de 2000, o País ganhou
a capa da revista científica Nature
ao anunciar o término do genoma da
Xylella fastidiosa, bactéria causadora
do amarelinho, doença que ataca laranjais e causa perdas anuais de até R$ 100 milhões só no Estado de São Paulo. Desde então, novas pesquisas têm colocado
o Brasil, ao lado da Índia e da China,
entre as nações em desenvolvimento que lideram o conhecimento genômico. “Com os projetos anteriores,
pudemos gerar competência e dominar a metodologia”, comenta
José Fernando Perez, diretor-científico da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

A instituição paulista foi uma das responsáveis pelos bons resultados brasileiros. Em 2000, ano de pico dos investimentos do setor, a fundação destinou R$ 29 milhões para a compra de equipamentos e produtos.
Em 2002, foram injetados mais R$ 14 milhões em 11 projetos principais. Desde a Xylella, foram finalizados genomas importantes, como o de alguns tipos de câncer, que ajudam a identificar genes ligados à doença, o da cana-de-açúcar, o das bactérias Xanthomonas citri e campestri, que atacam vegetais, e o do Schistosoma mansoni, parasita que causa a esquistossomose. Além disso, o País está envolvido na decodificação do café, do eucalipto e do guaraná.

Esse projeto, inclusive, mostra um outro aspecto da genômica no Brasil. O guaraná é o primeiro alvo de um novo consórcio, o Realgene (Rede Amazônia Legal de Pesquisas Genômicas), que une centros de pesquisa das regiões Norte e Nordeste. “A idéia é dar impulso às pesquisas genômicas na região”, comenta Spartaco Astolfi, professor da Universidade Federal do Amazonas e um dos coordenadores do projeto. De posse do genoma do guaraná, diz ele, é possível criar melhorias para o seu plantio no futuro. Na primeira fase, o estudo consumirá US$ 3 milhões – verba que deve ser destinada pelo governo e por algumas empresas privadas.

Novo impulso – A participação do setor privado é outro indício
da importância da genômica no Brasil. Em março de 2002, alguns pesquisadores que participaram do genoma da Xylella fundaram a
Alellyx Applied Genomics, cujo objetivo é usar os dados obtidos pelas pesquisas brasileiras para aplicações comerciais. O investimento na empresa, de R$ 30 milhões para os primeiros quatro anos, foi feito
pela Votorantim Ventures, um fundo criado pelo Grupo Votorantim. “A genômica terá uma importância crucial para a agropecuária brasileira”,
diz Paulo Arruda, pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp)
e um dos fundadores da empresa.

Estudar o genoma de uma espécie como a cana-de-açúcar, por exemplo, pode ajudar a identificar genes que tenham um papel central em seu desenvolvimento. A partir daí, é possível criar mecanismos que tornem a planta mais resistente a pragas ou capaz de crescer em solo menos propício. Segundo Perez, a demanda pelo sequenciamento de espécies de valor comercial, como a cana e o eucalipto, aumentou muito nos últimos dois anos. “Antes, o investimento privado era só simbólico”, diz. “Agora, as empresas estão cada vez mais presentes nos novos projetos.”

O que possibilitou essa quantidade de pesquisas foi o barateamento dos custos e a criação de processos mais rápidos de sequenciamento. “A tecnologia começou a ser desenvolvida no início do Projeto Genoma Humano,
na década de 80”, conta Arruda. “Tudo teve que ser criado do zero. Hoje, existem máquinas mais rápidas e econômicas.” Só no Brasil,
os custos para a mesma quantidade de material genético analisado representam um décimo do valor de 1997, quando o genoma
da Xylella começou a ser estudado.

No meio de tudo isso, há só um problema: a quantidade enorme de dados obtidos pelos pesquisadores. “Muitos cientistas estavam acostumados a estudar um gene de cada vez, e agora eles têm centenas deles”, conta o britânico Neil Hall. “Não é surpreendente que tenhamos que nos adaptar a essa nova quantidade de informação.”

A genômica, no entanto, não escapa de críticas. Para alguns cientistas, o enorme investimento não compensava os poucos resultados práticos imediatos. Para Perez, é preciso entender que o material sequenciado pode ser comparado à tabela periódica, na química. “Ela tem uma quantidade incrível de informações, mas, sozinha, não resolve nenhum problema”, comenta. “É preciso saber usar a ferramenta. A longo prazo, ela é promissora.” Para Hall, uma coisa é certa: o genoma vai mudar de vez a compreensão sobre a biologia nas próximas décadas. “Só começamos a avaliar o seu potencial”, afirma o cientista.