Certa vez perguntaram ao pintor pernambucano Cícero Dias – que morreu em Paris de causas naturais em seu apartamento, na manhã da terça-feira 28, aos 95 anos –
o que ele teria sido se não tivesse escolhido
a carreira de pintor. “Queria ser um rio”,
disse. Ou dois, como aqueles que cortam
a úmida Recife, onde foi morar na juventude
o menino de engenho nascido na pequena Escada, cidade perdida na verdejante Zona
da Mata pernambucana. Na ambição de que sua arte fosse líquida e fluida, Dias nomeou
sua obra mais famosa, feita entre 1926 e
1929, de Eu vi o mundo… ele começava
no Recife
, atualmente exibida na mostra
Da antropofagia a Brasília, em São Paulo.
Com sua profusão de cenas e cores, o painel medindo 12,5 m de comprimento por 1,5 m de altura é puro fluxo e correnteza, visão ao mesmo tempo aérea e epidérmica da vida que explode em todos os seus elementos. Pisciano, Dias não escondia o jogo. “Tenho a influência poética das águas”, afirmou mais de uma vez.

Nada mais natural, então, que ele tenha atingido o máximo de sua poética com as aquarelas, técnica apropriada ao clima de sonho de suas primeiras obras, a exemplo de Amo, que traz o verde dos canaviais e o azul-anil de suas reminiscências de criança. Surrealista sem ter lido nada de psicanálise, como Marc Chagall, cuja obra só veio conhecer bem depois, Dias abolia a gravidade, fazendo seus personagens flutuar, envoltos num clima de erotismo e lirismo raras vezes visto na arte brasileira. Com Tarsila do Amaral e Ismael Nery, compôs a tríade onírica do modernismo, do qual se afastou ao mudar para Paris, em 1937, fugindo da perseguição do Estado Novo. Na capital francesa, casou-se com Raymonde. Teve uma única filha, Sylvia, também pintora.

Ainda hoje se questiona se, como o Capibaribe, o rio Sena fez bem à arte de Dias. Influenciado pelo ambiente do bairro de Montparnasse, ele logo se converteu à abstração, só abandonada a partir dos anos 60, quando retornou aos temas tropicais. Não apresentou, contudo, o mesmo frescor inicial. Se no Brasil havia sido amigo de Murilo Mendes, Gilberto Freyre, Di Cavalcanti e Cândido Portinari, em Paris conheceu Matisse, Miró e Paul Éluard, entre outros. Também foi íntimo de Picasso, padrinho de sua filha. Durante 12 anos, permitiu que o autor de Guernica usasse seu nome na lista telefônica para não ser incomodado pelas mulheres. Graças à sua influência, Picasso deixou que o famoso painel viesse ao Brasil, em 1954, para a Bienal de São Paulo. Bem-humorado, Dias tinha sempre uma piada na manga para incomodar os críticos. Se dizia, por exemplo, influenciado pelas histórias em quadrinhos. “Michelangelo, na Capela Sistina, não fez outra coisa senão quadrinhos”, brincava.