Aos 28 anos, o programador digital Fabiano de Oliveira Costa, casado, dois filhos, é um cabra marcado para morrer. Condenado a 14 anos de prisão por assalto e tráfico de drogas, ele é o alvo número 1 de policiais civis e presos do Rio, onde testemunhou, em agosto passado, a pancadaria que levou à morte o chinês Chan Kim Chang. Na Justiça do Rio de Janeiro, negou o que viu. Já na Justiça Federal de Brasília, ele confirmou o crime, num depoimento em segredo. Na quinta-feira 27, falando com exclusividade a ISTOÉ na PF em Brasília, onde ganhou proteção, Fabiano relatou pela primeira vez a barbárie que testemunhou. E denunciou a trama, que mistura bicheiros, policiais e presos, para assassinar dois juízes no Rio até o Natal. Fabiano mandou carta manuscrita de 12 páginas ao presidente Lula contando o que sabe
– mas teme não estar vivo para ver a resposta do governo e da Justiça aos crime que testemunhou. “Não me abandone!”, apela na derradeira linha da carta a Lula.

ISTOÉ – O sr. é a única testemunha da pancadaria que levou à morte o chinês Chang. O que aconteceu?
Fabiano –
Eu trabalhava no setor de inspetoria do presídio Ary Franco. Vi o Chang chegar com os policiais federais, depois do almoço. Estava assustado, nervoso, mas andava normalmente. O agente mandou que ele tirasse a roupa. Chang ficou pelado, não tinha arranhão algum. Foi revistado, voltou a vestir a roupa, uma calça e uma camisa de malha. Chamaram o Milton Wu, um doleiro chinês preso pela PF, para tentar conversar com ele. Tentaram acalmá-lo. Falava com o Wu e ele traduzia. Chamaram o China, um preso que fazia foto, para botar nos arquivos. Chang foi levado para a cela A-1, na galeria A. Só saiu no dia seguinte. Por volta de 6h da tarde chegou o agente Mota, junto com outro preso, um australiano chamado Garry La Roche, e o Chang. Chamaram novamente o China. Quando o China veio, já era noite. Após uns cinco minutos, o agente Mota voltou, pediu a chave do armário à minha esquerda, um armário com produtos usados para revista – barra de ferro, marreta, lanterna – tirou um tipo de cabo de enxada, serrado, e falou: “Agora eu quero ver se ele bate ou não bate a foto.” E voltou para a sala de disciplina. Aí escutou-se um barulho, de coisa caindo. Todo mundo correu para ver o que era. Quando entramos na sala, vimos o agente Sarmento, em pé, segurando o monitor do computador, o Chang caído no chão, zonzo, encostado num armário, e o Mota com o porrete na mão. Quando o Mota nos viu, botou o porrete em cima do armário. O Chang, nessa hora, tentou levantar e se apoiou na mesa. A mesa virou, ele bateu com a cabeça na gaveta e realmente se cortou. Começou a sangrar e, em desespero, começou a falar algo em português: “Eu não quero morrer, não quero morrer.” Embolou a língua. Então, o Mota trouxe o Chang até a porta da inspetoria, e nisso chegaram três presos de um grupo de extermínio – o Duda, o Cláudio Gordinho e o Trique-Trique. Estavam chumbados, de tanta cachaça que tinham tomado, e começaram a agredir.

ISTOÉ – A pedido de alguém?
Fabiano –
Não, o Mota se achou ofendido por não ter conseguido tirar a foto. Chang não deixava o China fotografar. O Mota falou: “Bota esta filho da puta na cela.” Ao ouvir isso, ele tentou engatinhar de volta para a cela. O Mota deu-lhe um chute por dentro do peito, ele caiu e agarrou um armário de prateleira de aço. E os três presos começaram a agredir com chutes, soco, com o que dava. O Mota pediu uma algema e prendeu o braço direito do Chang, que segurava no armário. Continuaram a chutar para que ele fosse algemado, mas ele não deixava. Quando estava deitado de lado, o Mota deu dois pisões na cabeça do Chang. Ele sangrou pelo ouvido e, em razão da dor que sentia, soltou a mão do armário. Nessa hora, o agente Valério puxou-o pela perna até o corredor. Mota começou de novo a chutar o chinês. Mota e o Valério puxaram o chinês pelas pernas e pelos braços e levaram Chang para a triagem, lá em cima. O Valério abriu a porta, o Mota entrou com o chinês, fechou a porta e não se viu mais nada. Daí só se escutava o barulho das pancadas.

ISTOÉ – Só o Mota e o chinês?
Fabiano –
Só os dois, na sala de triagem. Passaram-se uns dez
minutos, o Mota cansou, saiu da sala, trancou a porta. O inspetor
Raul viu o estado em que ele se encontrava, e disseram que o chinês tinha dado problema, não queria foto, surtou e ele mesmo bateu com a cabeça e quebrou o computador. Raul ordenou: “Sai todo mundo e não deixa ninguém aí.”

ISTOÉ – E o Chang?
Fabiano –
Estava sangrando muito. A única coisa que se entendia
do que falava era: “Eu não quero morrer.” Quando Raul mandou todo mundo sair, Mota voltou à sala de disciplina, pegou de novo o porrete
– e neste momento o China bateu uma foto mostrando o Chang de pé, encostado na grade, com uma algema só no braço. O Mota botou o braço por dentro da grade e deu a última pancada, o golpe de misericórdia. Antigamente matava-se boi com uma machadada na cabeça e o boi despencava. Foi o barulho que nós escutamos. Ali Chang entrou em
coma e, dias depois, morreu.

ISTOÉ – O sr. está ameaçado de morte?
Fabiano –
Estou ameaçado pela cúpula da Polícia Civil do Rio, por agentes penitenciários e, principalmente, por presos. Sou um arquivo vivo.

ISTOÉ – O que o sr. sabe?
Fabiano –
Sei do esquema para assassinar a juíza Maria Angélica Guerra Guedes, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que condenou Rogério de Andrade, o bicheiro que mandou matar o próprio primo, Paulo Andrade, filho de Castor de Andrade.

ISTOÉ – Quem “condenou” a juíza?
Fabiano –
Rogério, que cedeu alguns pontos de jogo do bicho em Campo Grande e Bangu a três policiais civis – o Hélinho, o Jorginho e o Pereira, que era chefe da Divisão de Capturas da Polinter quando Álvaro Lins chefiava a polícia. A última notícia que tenho deles é que estavam lotados na 20ª DP, no Grajaú.

ISTOÉ – Como seria o plano para matar a juíza?
Fabiano –
A função dos três policiais era a de levantar a rotina, o esquema de segurança da juíza. Um preso que também mexe com
o bicho, João Luís de Castro Oliveira, vulgo Baiano, trataria de
contratar os executores.

ISTOÉ – E quem seriam?
Fabiano –
O Baiano está em liberdade condicional, embora responda por tráfico e sequestro na Bahia. Existe um agente penitenciário de nome Sena, conhecido como Mizinho e que foi candidato a vereador, lotado no presídio Ary Franco.

ISTOÉ – Como seria a execução da juíza?
Fabiano –
O Baiano, que também foi transferido para o Ary Franco, contratou José Luiz Felix Mendes, o Mendes, um preso matador, junto com o Cláudio Gordinho, o HC-4, o Duda e o Fernando Bombeiro.
Como eles têm liberdade para sair do presídio, iriam sequestrar a juíza e dar nela apenas um tiro. Como o Rogério foi condenado a 19 anos, o combinado foi que a juíza morreria com um tiro de calibre 38, que é o dobro da sua condenação.

ISTOÉ – Quando seria o crime e quem participaria da execução?
Fabiano –
Perto do Natal. Três policiais civis (Helinho, Jorginho e
Pereira), o Mizinho que teria sua nova campanha a vereador bancada
por Rogério de Andrade, o Baiano, os presos Fernando Bombeiro, Claudio Gordinho, Duda e Mendes e dois agentes do Serviço de Operações Externas (SOE) que fazem o transporte de presos: um é conhecido como General, que assumiu a chefia de segurança do Ary Franco na gestão do novo diretor, major Alexandre Azevedo, e outro é conhecido como Capoeira. Eu posso reconhecê-los.

ISTOÉ – O juiz que condenou o propinoduto também é alvo
de ameaça?
Fabiano –
Os empresários Alexandre Martins e Reinaldo Pitta, presos no Ary Franco no processo do propinoduto, abasteciam na prisão os grupos de extermínio, que matam por dinheiro. Eles davam ajuda financeira para a família dos matadores, roupas, camisas de times de futebol da Nike. Era a turma da cela C-4, que nunca fica trancada, frequentada por Fernando Bombeiro, o Cláudio Gordinho, Duda, Trique-Trique.

ISTOÉ – Essa turma é do Comando Vermelho? Eles estavam
gratos à dupla?
Fabiano –
É. Prometeram que, se Alexandre e Reinaldo fossem condenados pelo juiz Lafredo Lisboa, da 3ª Vara Federal, eles iriam dar a cabeça do juiz de presente. E o juiz condenou cada um a 11 anos.

ISTOÉ – Matar juiz vale dinheiro?
Fabiano –
Aquele que apertar o gatilho contra a dra. Maria Angélica
vai ganhar R$ 200 mil. Pelo que o Baiano falou, é uma bala de prata
com o nome da juíza gravado.

ISTOÉ – Como é que o sr. sabe tudo isso?
Fabiano –
A cela em que eu estava, a C-3, era em frente à deles.
Um dos responsáveis pelo plano, o Mendes, morava na minha cela. E o Baiano dividiu a mesma cela.

ISTOÉ – O sr. tem algum documento que prove isso?
Fabiano –
Não, só a força do meu testemunho e da minha memória.

 

O crime

No dia 27 de agosto, o comerciante chinês naturalizado brasileiro Cham Kim Chang foi encontrado em estado de coma, com vários hematomas e escoriações, numa cela do presídio Ary Franco, no Rio. Um dia antes, ele havia sido preso no Aeroporto Internacional Tom Jobim ao tentar embarcar para os EUA com US$ 31 mil não declarados à Receita Federal. Levado para o Hospital Salgado Filho, Chang morreu no dia 4 de setembro. Em seus primeiros depoimentos, os agentes do presídio alegaram que o comerciante sofrera um “surto” e teria batido com a cabeça voluntariamente em um móvel da sala de identificação de presos. Mas o fato de a sala ter sido lavada após o ocorrido reforçou a suspeita de espancamento, posteriormente confirmada pela perícia. O diretor do presídio e os agentes penitenciários foram afastados e o caso, inicialmente registrado como “dano ao patrimônio público”, acabou alterado pela Delegacia de Homicídios para tortura seguida de morte. O comerciante vivia há 20 anos no Brasil com a mulher e com os dois filhos. Vendeu uma das quatro pastelarias que tinha no Rio para realizar o sonho de comprar uma casa em San Diego, nos EUA, para onde pretendia se mudar.

Francisco Alves Filho