Toda foto, por mais banal que seja, encerra sempre um paradoxo. Feita muitas vezes para registrar
um momento fortuito, basta se impregnar da poeira do tempo
para se enriquecer de significados visuais. Explorar uma foto
antiga passa a ser, então, uma aventura inesgotável para o olhar – exatamente o que acontece diante das 210 imagens do livro O Brasil na fotografia oitocentista (Metalivros, 296 págs., R$ 110), do pesquisador e fotógrafo Pedro Karp Vasquez. Reunindo trabalhos dos mais importantes nomes em atividade no País a partir de 1840, ano em que a invenção aportou por aqui, o volume faz um completo inventário dos diferentes temas explorados por 48 fotógrafos, dez deles anônimos. De estonteantes vistas da Baía da Guanabara aos detalhistas interiores de moradias, do cotidiano na corte à transformação da mão-de-obra com a chegada dos imigrantes e o fim da escravidão, o que se tem diante dos olhos é a História em estado bruto.

Vasquez tem se debruçado sobre esse material farto de informações antropológicas e sociais – para não dizer, ideológicas – há mais de 20 anos. Esse é o sexto livro que publica sobre o assunto e, ao que parece, o derradeiro. “É o meu adeus aos meus amigos do século XIX”, diz o carioca, com a consciência da tarefa cumprida. Os “amigos” atendem
pelo nome de Marc Ferrez, Victor Frond, Augusto Stahl, Militão Augusto de Azevedo, Camillo Vedani, Albert Dietze, entre outros, e especialmente Revert Klumb, sobre quem já dedicou dois livros – Revert Henrique
Klumb: um alemão na corte imperial brasileira e Álbum da estrada União
e Indústria
. É dele a moderníssima Orquídeas, feita em estúdio, em Petrópolis, por volta de 1874, precursora do trabalho do americano
Robert Maplethorpe.

A imagem aparece no capítulo O murmúrio da floresta e o sussurro das plantas, que engloba a documentação da exuberante flora tropical, fruto de interesses mais estéticos. Em sua pesquisa, Vasquez identificou mais oito temas, a saber: a cidade, a paisagem, as moradias, a formação do povo, o cotidiano, o trabalho, a ideologia do progresso e os grandes eventos históricos, como a Abolição da Escravatura, a Guerra do Paraguai, a Revolta da Armada e a Campanha de Canudos. Consultou 21 acervos de coleções públicas nacionais, como os da Biblioteca Nacional, do Museu Imperial e do Museu do Índio, sem falar dos museus alemães Reiss Museum, de Mannheim, e Institut Für Länderkunde, de Leipzig. “É a primeira vez que se trazem fotos de fora do País para se publicar num livro brasileiro”, conta Vasquez, que destaca do conjunto inédito as fotos dos índios meinacos e das duas índias da região do rio Araguaia, no Pará, registrados em 1894 pelo alemão Paul Ehrenreich.

Publicado pela primeira vez em livro é também o retrato da índia Toba, feito por volta de 1874 por Marc Ferrez. Conhecido como paisagista, Ferrez deixou imagens esplêndidas como Jurujuba com Pão de Açúcar ao fundo (c.1885), de composição sofisticada, inspirada na pintura romântica – segundo Vasquez, uma das imagens mais belas já feitas no País –, Cachoeira de Paulo Afonso (1875) e Fortaleza de Santa Cruz, entrada da Barra e Pão de Açúcar vistos do Forte São Luís (c.1885), todas publicadas no livro. Mas o fotógrafo também se dedicou ao retrato, a exemplo da singela foto da índia Toba. Sensível à chegada da mão-de-obra estrangeira, ele documentou com um olhar quase antropológico trabalhadores de rua, como um suado vendedor de vassouras e espanadores e dois bigodudos garrafeiros, que impressionam pelas roupas remendadas e os pés descalços, detalhes antes comuns apenas nos escravos. “Na fotografia do século XIX, não existia muito essa preocupação. Fazia-se o registro das cidades e do cotidiano sem muita pretensão. Não é esse o caso de Ferrez. Em seu trabalho se nota uma clara intenção documental”, explica Vasquez, cujo volume já se coloca como uma das mais importantes obras de referência sobre a fotografia brasileira, volume imprescindível nas melhores estantes.