Na Nova Zelândia, já estava quase amanhecendo a sexta-feira 7 quando uma notícia do Brasil colocou o país de luto. O ecologista Peter Blake, 53 anos, um dos velejadores mais premiados e respeitados da história do iatismo (leia quadro à pág. 92) fora morto a tiros por piratas que invadiram o barco de expedições Seamaster. O veleiro de 36 metros estava ancorado no rio Amazonas, na praia da Fazendinha, localizada a cerca de 20 quilômetros de Macapá (AP), enquanto aguardava liberação da Capitania dos Portos para atracar no porto da capital do Amapá. No horário de Brasília, eram quase 22h15 da quarta-feira 5 quando oito pessoas mascaradas se aproximaram do veleiro usando uma voadeira, barco equipado com um possante motor de popa. Armados, quatro deles, usando capecetes de motoqueiros por cima das máscaras, subiram a bordo do Seamaster e surpreenderam Blake e mais oito tripulantes. Gritaram “money, money”. O experiente velejador colocou-se diante da tripulação e entregou aos bandidos seu relógio Omega. Eles não se contentaram e continuaram a exigir, em inglês, que lhe entregassem dinheiro. A Polícia Federal sustenta que houve troca de tiros, pois toda a tripulação do veleiro portava armas de fogo. Amigos de Blake, no entanto, duvidam dessa versão. O que se sabe com certeza é que a ação dos ratos d’água, como são chamados os piratas de água doce do Norte do Brasil, não durou mais do que dez minutos. Pelo menos um disparo acertou o peito do velejador. Blake morreu instantaneamente. Segundo relatos de tripulantes do veleiro à PF, não houve tempo para as tentativas de reanimá-lo.

O crime estarreceu o mundo. Na Nova Zelândia, onde Blake era tratado como um ídolo do quilate de Pelé ou Ayrton Senna, as repartições públicas hastearam as bandeiras a meio pau e os trabalhos no Parlamento foram interrompidos. Além de tirar a vida do capitão que vinha dedicando seu tempo às pesquisas sobre os ecossistemas, os piratas do rio Amazonas feriram o pesquisador Geoff Bollock, 28 anos, e o engenheiro Roger Moore, 55. Bollock levou um tiro nas costas e Moore, uma coronhada no rosto. Ambos foram transportados para o Hospital de Emergências, em Macapá, e liberados três horas depois. A PF alega que um dos bandidos teria sido ferido na mão. Do veleiro, além do relógio de Blake, os ratos d’água levaram equipamentos, um motor de popa de 15 hps e uma bússola, presente dado pela rainha britânica Elizabeth II em 1991, quando o condecorou com a Ordem de Cavaleiro do Império Britânico e o transformou em Sir Peter Blake.

Ratos presos – Na madrugada de sexta-feira 7, a polícia seguiu uma advogada que iria encontrar um grupo e prendeu sete dos oito acusados de pertencer à quadrilha no Porto de Santana, a 30 quilômetros de Macapá. De acordo com a PF, pelo menos quatro deles admitiram ter participado da ação. “Os cabeças se chamam Ricardo Colares e Izael Pantoja”, informou o assessor da PF José Araújo Filho. “Objetos retirados do barco foram encontrados na casa da mãe do Colares, que teria atirado em Peter Blake”, completou o assessor. Apesar de não existirem registros de casos que tenham acabado em morte, a PF admite que os assaltos aquáticos são muito comuns naquela praia, onde ancoram as embarcações estrangeiras que se dirigem ao porto de Macapá para vistoria. O curioso é que os federais exigem que os barcos fiquem ali sem nenhuma proteção.

Na tarde da quinta-feira 6, o presidente Fernando Henrique Cardoso encaminhou telegrama de condolências à primeira-ministra da Nova Zelândia, Helen Clark – que esteve recentemente no Brasil e encontrou-se com Blake no Seamaster. O governador do Amapá, João Capiberibe (PSB), ecoou o discurso. “Este caso humilha o Brasil, mas aposto que daremos a resposta”, disse. A embaixadora da Nova Zelândia no Brasil, Denise Almoa, acompanha as investigaçõe e trabalha para a liberação do corpo do navegador, que deixou mulher e duas filhas.

Colares e seus parceiros disseram que atiraram porque Sir Blake reagiu. Mas, se depender do que pensam os amigos do velejador, a PF pode estar diante de um mistério com várias hipóteses. “Duvido que ele tenha reagido ou permitido qualquer reação de sua tripulação. Ele sabia que esse tipo de pirata existe no mundo todo e sempre aconselhava os amigos a entregar todo o dinheiro”, diz o iatista Klaus Peters, amigo de Blake desde 1992. Em setembro último, porém, numa entrevista exclusiva a ISTOÉ, o neozelandês mostrou uma disposição diferente. Perguntado sobre os riscos que corria navegando em águas sul-americanas, o velejador foi enfático: “Estamos cientes desta situação e nos preparando muito bem. Estamos falando com as pessoas certas e procurando garantir a nossa segurança. Se o pior acontecer, ofereceremos dura resistência aos ataques. Temos uma tripulação grande e teremos guardas também.” Na Nova Zelândia, velejadores próximos de Blake suspeitam que o campeão tenha sido vítima de pessoas que, por algum motivo, ele conhecia. Algum guia ou mesmo alguém que lhe tenha vendido mantimentos. A hipótese decorre dos hábitos do navegador. Ele sempre tinha o costume de manter um vigia no convés para identificar qualquer aproximação. Na noite do crime, o veleiro só conseguiu pedir socorro depois que a tragédia ocorreu. Às 22h34 a Capitania dos Portos de Macapá recebeu por rádio o pedido de socorro e imediatamente comunicou o caso à Polícia Federal. “Esse é um caso de polícia. Não temos nada com isso, apenas recebemos a informação”, disse o tenente Roberto, da Capitania.

Determinado a dar a volta ao mundo para defender o meio ambiente, Blake partiu de sua terra natal, em novembro do ano passado, esperando documentar os principais ecossistemas do mundo. Passou dois meses nas geleiras da Antártica, e resolveu ver de perto a fauna e a flora da Amazônia. A ‘Blakexpeditions’, sua empresa, tinha o apoio do Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUED) e era patrocinada pela Omega, a fabricante do relógio levado pelos assassinos. Antes de ancorar em seu último porto, na praia da Fazendinha – um vilarejo com cinco mil habitantes-, Blake esteve em Manaus (AM), navegando pelo rio Negro. No Amapá, entraria em contato com a Agência de Desenvolvimento do Amapá (Adap), articuladora de sua visita ao Estado. O previsto era navegar pelo rio Amazonas até o Atlântico e depois seguir para o rio Orinoco, na Venezuela, onde encontraria outro grupo ecológico. Acostumado a enfrentar as tormentas dos mares, foi morto por ratos d’água doce.

Colaborou Eduardo Hollanda, de Brasília.

UM CAMPEÃO APAIXONADO
PELA NATUREZA

O velejador brasileiro Torben Grael, ganhador de quatro medalhas olímpicas, entre elas uma de ouro, está em Auckland, na Nova Zelândia. Treina para disputar novamente a America’s Cup – a competição esportiva mais antiga de que se tem notícia, criada em 1851 – pela equipe italiana Prada. Desde a chegada, ele mantém o rádio-relógio sintonizado numa estação dedicada exclusivamente a músicas. Na manhã da quinta-feira 6, Torben, pela primeira vez, despertou com a voz de um locutor. “Uma situação desconfortável: eu, no país da vela, que é também minha profissão, ouvindo que o Peter, o maior ídolo deles no iatismo, tinha sido assassinado justamente no meu país”, contou o iatista a ISTOÉ.

Torben levantou cedo na quinta-feira, mas não treinou. Nem ele nem os companheiros da Prada, tampouco os marinheiros das outras cinco equipes instaladas na baía. Atividades em marinas e eventos relacionados ao iatismo foram suspensos. Não era para menos: a bela Auckland, com seus 800 mil habitantes, é a cidade natal de Peter Blake, provavelmente o iatista mais premiado na história da vela. Entre as dezenas de títulos importantes, ele venceu em 1990 a Whitbread, atual Volvo Ocean Race, que chegará ao Rio de Janeiro em fevereiro de 2002. Em 1994, estabeleceu um recorde ao dar a volta ao mundo num veleiro em 74 dias, 22 horas, 17 minutos e 22 segundos. No ano seguinte, tornou-se o comandante do primeiro barco não-americano a vencer a America’s Cup. Em 2000, levou o bi em Auckland como coordenador da equipe Black Magic, que derrotou o Luna Rossa/Prada de Torben por 5 a 0 na melhor de nove final. Foi bicampeão das regatas Fastnet (1979 e 1989) e Sydney-Hobart (1980 e 1984). Entre as honrarias, foi nomeado Cavaleiro do Império Britânico pela rainha Elizabeth II em 1991 e, depois, embaixador do meio ambiente das Nações Unidas. Recebeu também dois prêmios de esportista do ano e quatro de iatista do ano no mundo.

“A imagem do País no Exterior sofreu um golpe duríssimo”
Robert scheidt

Após o segundo triunfo na America’s Cup, Blake decidiu abandonar as competições formais e transformou o planeta numa grande raia para as pesquisas e aventuras da Blakexpeditions, sua expedição, apoiada pela ONU. Muitos os consideravam o sucessor de Jacques Cousteau. Queria conhecer ecossistemas e descobrir as causas de problemas como o aquecimento do planeta. Fez pesquisas na Antártica e no Mar Cáspio. Radical, proibia a tripulação de usar repelentes nas florestas, para que ela “sentisse na própria pele a intensidade da vida selvagem”. O impacto da morte de Blake foi ainda mais forte entre os velejadores. “O Peter nasceu num país onde 27% da população possui algum tipo de embarcação. É o maior porcentual do mundo. Não é exagero dizer que eles perderam um ídolo supremo, um Ayrton Senna ou mesmo um Pelé”, disse o navegador Amyr Klink de Palma de Mallorca, na

“Peter unia o talento do Torben e a disciplina de Amyr Klink”
lars Grael

Espanha. “Ele era minha referência. O Paratii 2, meu novo barco, é filho do Seamaster. Os dois foram projetados pelos mesmos arquitetos. Fiquei orgulhoso de ver o Peter rumar para as expedições, um caminho que sempre trilhei. O Brasil, infelizmente, está entre os países de risco para a navegação, ao lado da Venezuela, da China e do Panamá”, completou Klink. “Ele unia a sensibilidade do Torben a um talento raro, como o de Amyr, para organizar expedições de exploração”, analisa o secretário nacional de Esportes Lars Grael, irmão de Torben e dono de duas medalhas olímpicas. “A imagem do Brasil no Exterior sofreu um golpe duríssimo”, constata Robert Scheidt, o maior vencedor internacional da história do esporte individual brasileiro. Os comentários dos especialistas não deixam dúvidas: os mares e o meio ambiente perderam um de seus principais defensores.