O cineasta Helvécio Ratton, famoso por criações brasileiríssimas, como A dança dos bonecos e Uma onda no ar, começou semana passada a filmar na França. Não, Ratton não se encantou por nenhum tema francês, embora se emocione ao descrever o La Tourette, um mosteiro modernista projetado nos anos 50 pelo mestre Le Corbusier, nas imediações de Lyon. “Um lugar que remete a pessoa para dentro dela mesma de uma forma absurda”, confidencia. O cineasta mineiro e sua equipe se abrigaram no monumento de concreto para recontar os últimos meses da vida do Frei Tito, o dominicano que, atormentado pelas torturas sofridas no Brasil, acabou se enforcando numa árvore da região. Batismo de sangue, baseado no premiado livro homônimo de Frei Betto – publicado pela primeira vez em 1983 e com relançamento marcado para o ano que vem, pela Editora Rocco –, conta a trajetória de cinco religiosos da ordem dos dominicanos que se envolveram na resistência à ditadura militar no Brasil (1964-1985). “O filme é destinado sobretudo às novas gerações, não tem nada de panfletário”, avalia Frei Betto, que será representado no cinema pelo ator Daniel de Oliveira. Com lançamento programado para agosto de 2006, Batismo de sangue é um dos muitos fachos de luz que estão sendo lançados sobre o período mais sombrio da história recente do Brasil. Vinte anos depois do fim do regime militar, e coincidindo com a promessa de abertura dos “arquivos da ditadura”, sob a guarda da Agência Brasileira de Inteligência, telas e prateleiras de todo o País refletem como nunca uma época que não deixou saudades, mas precisa ser conhecida. Até para que não volte a acontecer.

No cenário musical, uma cena antológica acaba de emergir da escuridão. Numa noite dos anos de chumbo, Chico Buarque e Gilberto Gil começavam a cantar Cálice e, um a um, seus microfones foram cortados. “Arroz à grega”, cantarolou Chico com ironia, usando o mesmo recurso dos jornais censurados, que publicavam receitas culinárias no espaço dos artigos vetados. Ao mesmo tempo, Gilberto Gil ensaiou uma onomatopéia até que, desistindo, afagou o parceiro de palco. “Estão me aporrinhando muito. Esse negócio de desligar o som não estava no programa”, reclamou Chico, desabafo registrado pela mesa de áudio, que fora esquecida pelos homens da polícia política. “Claro, estava no programa que eu não posso cantar a música (Cálice) nem Ana de Amsterdam”, completou, referindo-se à composição feita em parceria com Ruy Guerra para a peça Calabar.

O episódio protagonizado por Chico Buarque e Gilberto Gil aconteceu durante um festival promovido pela antiga Phonogram, atual Universal Music, entre 11 e 13 de maio de 1973, no Anhembi, que acabou se transformando em protesto contra o cerceamento da liberdade de expressão. No palco, estava a nata da música popular brasileira, que o cineasta Guga de Oliveira filmou em películas de 35 milímetros. O projeto para o cinema jamais se concretizou e, com o passar dos anos, parte do material se deteriorou. Trinta e cinco gloriosos minutos foram, no entanto, resgatados para o DVD O sonho acabou, que, acompanhado de dois CDs com as 32 faixas, integra a recém-lançada caixa Phono 73 – o canto de um povo, mesmo nome do festival que reuniu uma média de 3.500 pessoas por noite.

Emboscada – Nos tempos atuais, efervescência similar pode ser constatada no mercado de livros, a começar por Náufrago da utopia (Geração Editorial, 304 págs., R$ 39), do jornalista paulistano Celso Lungaretti. Marcado injustamente pela pecha de delator, Lungaretti faz no livro um envolvente relato de quem cerrou fileiras ao lado do capitão Carlos Lamarca, que trocou o Exército pela guerrilha. Outro episódio obscuro da repressão é esquadrinhado por Aluízio Palmar, no instigante Onde foi que enterraram nossos mortos? (Travessa dos Editores, 367 págs., R$ 30). Trata-se do desaparecimento de seis militantes que estavam radicados na Argentina em 1974 e, atraídos para uma emboscada, voltaram ao Brasil para retomar a luta armada contra o regime militar. Convidado para integrar o grupo, Palmar só sobreviveu porque se recusou a tentar a travessia. Em contrapartida, dedicou os últimos 26 anos a esclarecer as circunstâncias da morte dos companheiros, entre eles o lendário Onofre Pinto, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Alguns daqueles que jamais pegaram em armas, mas, de forma indireta, ajudaram a desmontar o regime de força instalado em 1964 estão na coletânea 10 reportagens que abalaram a ditadura (Record, 368 págs., R$ 44,90). Uma dessas reportagens é A casa dos horrores, de Lúcia Romeu, publicada na ISTOÉ em fevereiro de 1981. Nela, a ex-presa política Inês Etienne Romeu localiza em Petrópolis (RJ) o centro clandestino de tortura, onde foi seviciada e muitos “desapareceram”. A mesma editora relança agora um clássico do período, Memórias do esquecimento (Record, 304 págs., R$ 39,90), do jornalista Flávio Tavares, um dos 15 presos políticos trocados em setembro de 1969 pelo embaixador americano Charles Elbrick, que havia sido seqüestrado por uma organização guerrilheira. Na mesma leva, sai Pouso forçado (Record, 210 págs., R$ 34,90), do jornalista Daniel Leb Sasaki, que tinha apenas três anos quando a ditadura terminou. Com base em exaustiva pesquisa, Sasaki demonstra como o regime militar, para favorecer um concorrente, destruiu a Panair, a mais famosa companhia aérea nacional, imortalizada na música de Milton Nascimento e Fernando Brant Conversando no bar. Como diz a letra da canção, a maior arma é “o que a memória guarda dos tempos da Panair”.

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