Por trás do apelido Alemão se escondia a ascendência do militar sisudo e seguidor contumaz dos manuais. Mais erudito, o codinome Corca era por sua vez uma derivação nada sofisticada de Corcunda de Notre Dame, o personagem de Victor Hugo. Assim eram conhecidos nos quartéis os generais gaúchos Ernesto Geisel, que presidiu o País entre 1974 e 1979, e Golbery do Couto e Silva, seu chefe do Gabinete Civil, a eminência parda sob siglas como ESG – Escola Superior de Guerra, SNI – Serviço Nacional de Informações, e Ipês – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, entre outras que ainda causam calafrios. É em torno desses dois personagens considerados taciturnos e enigmáticos que gira o esperadíssimo A ditadura derrotada (Companhia das Letras, 554 págs., R$ 49,50), terceiro momento do painel monumental em cinco volumes sobre o regime militar no Brasil, escrito pelo jornalista Elio Gaspari. Os anteriores, A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada, juntos intitulados As ilusões armadas, cobriam o período compreendido entre a deposição de João Goulart, em 1964, e a aniquilação da guerrilha do Araguaia, em 1973. Foram escritos com o auxílio de 30 mil fichas armazenadas em computador, fruto de mais de 300 entrevistas e da leitura de cerca de 500 livros. Para escrever A ditadura derrotada, primeiro volume do tríptico O sacerdote e o feiticeiro, Gaspari se tornou depositário de cinco mil documentos do Arquivo Golbery e do diário de Heitor Ferreira, secretário particular de Geisel, “o sacerdote”, e de Golbery, “o feiticeiro”. Detalhe que, por si só, já torna a obra espetacular, já que trata de conversas e de assuntos cujo conteúdo nem mesmo os envolvidos sabiam.

Na longa relação de desavisados desponta o economista Delfim Netto, ministro da Fazenda do general Emílio Médici fritado durante a canonização de Geisel. O Gordo, como era conhecido, foi chamado
por Golbery de ditador, alguém sem escrúpulos para usar o poder, e acusado de manipulador de preços e índices. Mais tarde, os dois seriam colegas de Ministério no governo Figueiredo. Não fica de fora a economista Maria da Conceição Tavares, presa no aeroporto do Galeão, em 1974, quando embarcava licitamente para o Chile. Quando Geisel
quis saber dela e ninguém soube responder, falou em “botar a metade
do Exército no olho da rua”. Os casos pululam pelas páginas ricas em notas de rodapé. Gaspari já havia adquirido o hábito de jantar com
Geisel semanalmente no restaurante Rio’s, localizado no aterro do Flamengo, quando começou a escrever, em 1984, um ensaio de “no máximo 100 páginas” sobre os dois militares que, tendo ajudado a construir a ditadura entre 1964 e 1967, a desmontaram entre 1974 e 1979. Embora medisse 1,77 m, Geisel aparentava muito mais. Ao caminhar pelo restaurante, não havia quem não abaixasse os olhos, o que fazia com que ele, num arremedo de humor involuntário – já que não tinha humor –, comentasse: “Isso aí é medo do AI-5.”

Grosso modo, quem olhava para Geisel enxergava um militar de alta patente. Golbery, do seu lado, podia ser confundido com um gerente de banco. Os dois se conheceram nos anos 1950 na Escola Superior de Guerra e a amizade que devotaram um ao outro se deu com a secura típica de temperamentos fechados e subordinados à hierarquia do Exército. Circunspecto por natureza, o ex-presidente tornou-se inacessível a partir da morte do filho mais velho, Orlando, aos 16 anos, atropelado por um trem em São Paulo, em 1957. Mais falador, desde que o interlocutor o interessasse, Golbery, pai de dois filhos, era casado com uma mulher ciclotímica, com “um problema psiquiátrico”, dizia, mas capaz de insights políticos não raro seguidos pelo marido. Seu nome era Esmeralda, como a heroína do livro de Victor Hugo. Daí o apelido, Corca, de Golbery, também conhecido como GeneDow, já que era presidente da Dow Chemical do Brasil – Geisel presidia a Petrobras.

Tais fatores os afastavam do convívio social. Eles não recebiam, não visitavam, nem sequer iam ao cinema. Mas Geisel foi visto chorando no enterro do amigo. No entender de Gaspari, eram pessoas simples. E é isso o que choca. Num dos trechos mais importantes de A ditadura derrotada fica-se sabendo que Geisel, antes de ser empossado em fevereiro de 1974, ouviu do general Dale Coutinho que o “negócio” – a repressão à subversão – “melhorou quando começamos a matar”, numa referência ao fim dos “confrontos armados” e dos “suicídios” suspeitos e ao surgimento da figura do “desaparecido”. “Ó Coutinho”, disse o futuro presidente, “esse troço de matar é uma barbaridade mas eu acho que tem que ser.” Disse isso com a mesma simplicidade com que repeliu o golpe dentro do golpe, ao vê-lo se desenhando após a vitória da oposição nas eleições de 1974. “Pois não fizemos uma eleição? É isso e pronto!” O resto das revelações fica para A ditadura encurralada, provável título do próximo volume de O sacerdote e o feiticeiro, previsto para ser lançado em março do ano que vem, cobrindo até a demissão do general Sylvio Frota, em 1977, pá de cal no autoritarismo. Assim seja.