Não há estudos demonstrando que a lagosta e o peixe espadarte têm uma relação cármica. Eles tampouco são parentes. O comum entre essas espécies é que, imersas no total desconhecimento sobre seu destino e por quem serão levadas à mesa, tornaram-se alvo de uma disputa internacional esfomeada. Com direito a berros, socos na mesa e retaliações, já que os códigos no mar não incluem sutilezas. Na década de 60, a meta foi o crustáceo, perseguido implacavelmente pelos franceses em águas brasileiras. O Brasil sustentava que a lagosta se arrastava sobre sua plataforma continental. A França insistia que capturava a lagosta quando ela pulava na água, longe da zona costeira. O constrangimento diplomático foi uma das razões que levaram o Brasil a assinar, em 1970, um decreto estabelecendo a soberania nacional sobre 370,4 quilômetros de área marítima, as 200 milhas náuticas a partir da costa onde cada nação tem direitos exclusivos de exploração. Agora o País volta à linha de tiro, desta vez contra a Espanha
e a China. A isca da discórdia é o espadarte, espécie capturada na pesca do atum.

Sua exploração é controlada e não podem sair do oceano mais que exatas 14.620 toneladas ao ano. Leva mais peixe quem historicamente pesca mais. A Espanha detém o maior naco do cardápio, 42% ou 5.848 toneladas. A cota brasileira foi fixada em 2.340 toneladas pela Comissão Internacional para a Conservação do Atum Atlântico (ICCAT). Com o apoio de 20 nações da América do Sul, África e Caribe, o Brasil resolveu mudar as regras. Conseguiu dobrar seu volume de pesca para 4.720 toneladas e aprovar uma lista de 19 novos critérios para redistribuição das cotas de captura. Como história de pescador costuma ser longa, essa ainda está longe de um final feliz.

Soberania – Com bico alongado e até 4,5 metros de comprimento, o espadarte é um dos peixes mais caros do mercado. O quilo custa em torno de US$ 10 e rende ao Brasil US$ 25 milhões ao ano. Por ser uma carne apreciada nos EUA para churrasco, ele é conhecido como picanha do mar. Numa reação à “revolta” brasileira, Espanha e China retiraram do mar tupiniquim cerca de dez barcos arrendados aos pescadores. Intransigente e municiada com o devido lobby espanhol, a Comunidade Européia briga para que os novos critérios de distribuição de cotas sejam aplicados somente daqui a quatro anos. “O Brasil é o maior país do Atlântico Sul e as espécies oceânicas ocorrem tanto dentro da área de soberania nacional como nas águas adjacentes. É inaceitável que sejamos impedidos de aumentar a ação pesqueira em nossa própria sala de visitas”, protesta o representante científico da delegação brasileira junto ao ICCAT, o engenheiro de pesca pernambucano Fábio Hazin.

Todas as nações juntas pescam 86 milhões de toneladas ao ano. O Brasil participa com apenas 5% dessa produção, cerca de 420 mil toneladas. Desse total, 98% são capturadas em águas costeiras. A pesca em excesso, as redes de arrasto que danificam o fundo do mar e descartam uma enorme quantidade de espécies, a destruição dos manguezais, a especulação imobiliária, a ocupação desordenada e a poluição provocaram o inevitável: a degradação das faixas litorâneas e o esgotamento dos estoques. A lagosta, pivô da “batalha naval” no passado, é um exemplo. Há seis anos, o País recolhia 8.026 toneladas do crustáceo. Em 2001, foram 5.950 toneladas. É por isso que muitos “lagosteiros” decidiram se voltar para o oceano e pescar espadarte como alternativa. Só que a pesca longe do litoral – concentrada na exploração de 13 espécies de atuns, agulhões e tubarões – também está no limite. Para que os recursos pesqueiros não minguem, a captura do atum albacora branca foi restrita a 29.200 toneladas ao ano. Já a pesca dos agulhões branco e negro teve que ser reduzida à metade, com a recomendação para que os peixes que cheguem vivos ao barco sejam devolvidos ao mar.

A torta de atum e afins, cujos pedaços caem principalmente nas redes de pesca do Japão, Coréia, China, Espanha, Portugal, França, Inglaterra, EUA e Canadá, não tem perspectivas de crescer. Mais uma vez, será preciso fazer nova divisão do bolo. É aí que bóia o problema. Ninguém quer reduzir sua produção. O Brasil briga com os grandes pela partilha, mas não tem sequer uma frota de navios pesqueiros. Conta com 40 barcos nacionais e arrenda outros 95 estrangeiros. Além de retirar suas embarcações do mar brasileiro como retaliação, os adversários querem impor uma mudança no chamado estado de bandeira. Se o barco for de origem espanhola, por exemplo, o pescado seria considerado espanhol. “Precisamos alterar a legislação que proíbe a compra de barcos estrangeiros usados. Dentro de dois anos, poderíamos nacionalizar pelo menos 50 deles e construir uma frota similar brasileira”, planeja Gabriel Calzavara de Araújo, diretor do Departamento de Pesca e Aquicultura do Ministério da Agricultura. O aumento que o Brasil conquistou nas cotas de participação da pesca do espadarte só anima essa disputa. E mesmo que os ambientalistas chiem com medo da extinção do peixe, ninguém pretende largar a espinha. “Se a gente pára de pescar, eles levam tudo das nossas águas. E se o governo não superar com rapidez os entraves, vamos literalmente ficar a ver navios”, cobra o engenheiro Hazin.