Na noite da quarta-feira 20, às oito horas e dois minutos, os noticiários da tevê anunciavam mais um atentado em Israel, a peregrinação dos muçulmanos à sagrada Meca, a proliferação da dengue e mais um capítulo na saga da facção criminosa PCC em presídios paulistas. No mesmo instante, uma coincidência matemática entrava para a história. Era a capicua, sequência de algarismos que permanece a mesma se lida na ordem direta ou inversa, como se refletida num espelho. Quando se trata de uma palavra ou frase que pode ser lida da esquerda para a direita, ou vice-versa, o fenômeno chama-se palíndromo. Na língua portuguesa, dois deles são célebres: Ovo e Erro comum ocorre. Apesar de místicos enxergarem significado na data cabalística, ela merece registro por pura curiosidade. Só duas vezes ocorreu uma capicua tão simétrica como a das 20h02 do dia 20/02/2002. A primeira foi às 10h01 de 10 de janeiro de 1001. O episódio se repetiu às 11h11 do dia 11 de novembro de 1111. Dentro de 110 anos haverá a última, quando os ponteiros cravarem 21h12 em 21 de dezembro de 2112. Outros candidatos como 2222, 2332 ou 3003 são eliminados porque não existe um mês 22, nem uma hora 30.

Idade Média – Nos dois primeiros eventos, a humanidade sequer se deu conta da coincidência porque a contagem dos dias obedecia a outro calendário. Em 1582 entrou em vigor o atual, instituído pelo papa Gregório XIII. O calendário se tornou indispensável após o ser humano abandonar os hábitos nômades. Ao se fixar à terra e tirar da agricultura o seu sustento, as civilizações precisavam medir o tempo para planejar a colheita e o plantio.

Quando aconteceu a primeira capicua de simetria perfeita, em 1001, na Idade Média, os povos respiravam aliviados por terem sobrevivido à previsão apocalíptica de fim do mundo. O sentimento catastrofista se arrastou desde 999 até o alvorecer do século XI, a ponto de muita gente vender os pertences e se refugiar no Vaticano. Na prática, vendeu algo quem possuía riqueza, já que se vivia o auge do feudalismo, regime baseado nas relações de servidão em que os camponeses se atrelavam aos senhores feudais em troca de proteção. Dinheiro, estudo e cultura eram restritos aos nobres e aos membros da Igreja. O campesinato era miserável. Para eles, o dia começava antes do sol raiar. Em cabanas de parede caiada, teto de palha e nenhuma janela, os vassalos conviviam com animais subnutridos. Alimentavam-se de sopa, mingau, pão integral e ale, bebida amarga feita a partir de cereais fermentados semelhante à cerveja. De cada três filhos, um sucumbia antes de completar um ano.
No ano de 1111, na segunda capicua, a agonia dos personagens era outra. Saíram senhores feudais e camponeses e entraram cristãos e muçulmanos, num conflito religioso que perdura até hoje. Os povos digladiavam-se no intervalo entre a primeira e a segunda Cruzada, movimento no qual a Europa cristã empenhou-se para recuperar lugares santos e assegurar o acesso às rotas de peregrinação. As expedições bélicas fomentaram o comércio e a navegação e motivaram a ascensão burguesa. O rei espanhol Alfonso I de Aragão, ou O Batalhador, comemorava a vitória na batalha de Campdespino e Viadangos, um dos muitos embates entre mouros e cristãos.

Quase nove séculos depois, em 2002, o epicentro da discórdia deslocou-se para o Oriente Médio, envolvendo judeus e palestinos. Não é o único foco de problemas do novo milênio. Na noite da quarta-feira 20, Geraldo Cavagnari, coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas, refletia sobre a declaração do presidente George W. Bush, que chamou a Coréia do Norte, o Irã e o Iraque de “eixo do mal”. Para o coronel, o quadro da próxima coincidência matemática, em 2112, é desanimador. “Nada indica que o mundo será mais pacífico. Os EUA usarão todos os meios para manter sua supremacia, como o escudo antimísseis e a política de eliminar quem possa desenvolver armas de destruição de massa. Além disso, todos os países estão se armando para o futuro”, analisa Cavagnari. Em sua opinião, entre as concessões necessárias para o equilíbrio do planeta está a conformidade dos americanos a medidas que beneficiem o planeta. Exemplo: a redução dos gases poluentes que agravam o efeito estufa, decisão da qual Bush não só discorda, como jura descumprir.

Dengue – Estudioso das mudanças climáticas, às 20h02 da quarta-feira 20, o físico carioca Luiz Pinguelli Rosa, diretor do programa de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, digladiava-se com um dilema prosaico: cuidar do filho de três anos com suspeita de dengue. Entre as consequências do aquecimento da Terra, ele diz, está a proliferação de pragas como os mosquitos transmissores de doenças tropicais. “Se nada for feito e as teorias estiverem certas, teremos mais chuvas, enchentes e aumento do nível do mar”, diz Rosa. A previsão é de um acréscimo de dois graus no termômetro em meio século. Uma alternativa seria reduzir o consumo de combustíveis fósseis, como gasolina e óleo diesel. Para o físico, a situação do meio ambiente sofrerá um revés por volta de 2050. “Se houver juízo na humanidade, o quadro poderá se reverter até 2112”, vaticina.

Preso no engarrafamento a caminho de casa, na Califórnia, o pesquisador brasileiro Jean Paul Jacob, da IBM, imaginava meios de a tecnologia cumprir seu objetivo: ampliar as horas de lazer, melhorar a qualidade de vida e evitar os deslocamentos inúteis. Jacob sonhava com o dia em que os carros produzirão água e vapor como resíduo. “Num engarrafamento, o pai pedirá ao filho com sede que beba água do escapamento do carro movido a hidrogênio”, profetiza. “Também será possível projetar na parede uma imagem do chefe, o que dispensaria a ida ao trabalho.” Na quarta-feira 20, o físico Marcomede Rangel, do Observatório Nacional do Rio, vagava pelo espaço, enquanto escrevia seu livro sobre uma cratera lunar. Em 2112, Rangel está convencido de que se verá um autêntico Casa dos artistas em Marte. O planeta vermelho é o próximo estágio na exploração do sistema solar. “Os astronautas ficarão confinados por pelo menos um ano e meio, o tempo de duração da viagem de ida e volta”, explica. Certamente, sem o conforto do programa do SBT.

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