Localizado na fronteira norte do Brasil, o Suriname é um país pouco maior do que o Estado do Ceará e tem uma população cinco vezes menor do que a de Fortaleza: cerca de 400 mil habitantes. Nessa ex-colônia holandesa de chão coberto pela Floresta Amazônica, vivem praticamente em regime de escravidão aproximadamente 40 mil brasileiros. São garimpeiros, a maior parte formada por paraenses e maranhenses, que há seis anos começaram a cruzar a fronteira em busca de ouro. Eles passam até um ano entocados no meio da selva. São obrigados a trabalhar 12 horas por dia sob um calor médio de 32 graus centígrados. Dormem em improvisadas barracas de lona plástica. Invariavelmente são abatidos pela malária e pela febre amarela e não gozam de absolutamente nenhum direito, embora sejam os responsáveis diretos pelo envio mensal de meia tonelada de ouro para o Banco Central do Suriname.

Até há pouco tempo, muitos desses brasileiros tinham a certeza de estar cada vez mais perto de ver o sonho de riqueza realizado. A fartura do ouro encontrado no solo vizinho e a condição de permanência legal no país – mediante um pagamento anual de US$ 200 ao governo surinamês – garantiam direito à educação e à saúde. As regras de trabalho eram preestabelecidas e o sacrifício no cotidiano efetivamente valia à pena.

O maranhense Antônio Queiroz, 35 anos, conhecido como Cintra, deixou o Brasil em 1996. Embrenhou-se na mata e começou a garimpar. “Trabalhava para outro brasileiro que era dono de um par de máquinas. Fiquei dois anos sem ver minha família, mas juntei US$ 12 mil. Em 1998, comprei minhas próprias máquinas e hoje tenho 14 garimpeiros trabalhando para mim”, lembra. Quando comprou as máquinas, Cintra subiu um degrau na pirâmide social do garimpo. De garimpeiro, passou a ser o que chamam de dono de garimpo (leia quadro à pág. 60). Diariamente ele sai do mato e se dirige às currutelas, espécies de vilarejos instalados na beira das precárias estradas de chão que cortam a floresta, onde estão barracas que vendem comida, remédios e óleo diesel. As currutelas servem em média a quatro pontos de garimpo, que se localizam de um a sete quilômetros da estrada, por trilhas que muitas vezes só podem ser transpostas a pé ou em quadriciclos. Do ouro encontrado por sua equipe, Cintra fica com 70%. Os garimpeiros levam 20% e o surinamês, que se diz o dono da terra, fica com 10%. Fora isso, ele precisa pagar ao surinamês uma espécie de pedágio todas as vezes que sai do acampamento. Cintra levou a mulher e os dois filhos para Paramaribo, a capital do Suriname. “Aluguei uma boa casa e as crianças tinham escola e hospital. Meu filho de 12 anos fala inglês e português”, afirma, sem esconder o orgulho. Cintra diz que consegue tirar da terra em média um quilo de ouro por mês. Descontando o que fica com os garimpeiros e o surinamês, restam-lhe 700 gramas. “Tirando o que pago de óleo, comida e pedágio, sobram 400 gramas por mês”, calcula. É ouro suficiente para um rendimento mensal de US$ 3,2 mil. “Comprei uma picape 4X4 e de três em três dias consigo ir até Paramaribo para visitar a família”, diz.

Ante-sala do inferno – Na selva do Suriname, histórias de sucesso como a de Cintra não são raras de encontrar. Por isso, o país durante muito tempo foi visto como espécie de eldorado por milhares de brasileiros. Desde janeiro, porém, o que parecia ser um pedaço do paraíso em plena Floresta Amazônica se transformou na ante-sala do inferno. A taxa de US$ 200 anuais que os garimpeiros brasileiros pagavam ao governo do Suriname para que tivessem a permanência no país legalizada não estava prevista em lei nem fazia parte de nenhum acordo com o governo brasileiro. No início deste ano, o presidente do Suriname, Ronald Venetran, simplesmente resolveu que a regra não vale mais. O resultado é que todos os garimpeiros brasileiros ganharam a condição de ilegais no Suriname. Com isso perderam todos os direitos, embora o governo local não demonstre nenhum empenho em expulsar os clandestinos do país. “Há vários casos de brasileiros que foram obrigados a entregar as máquinas, os carros e até as casas aos surinameses sem receber nenhum centavo em troca”, conta José Cardoso Neto, presidente da Cooperativa dos Garimpeiros do Suriname. “Hoje, o garimpeiro que consegue algum patrimônio precisa colocá-lo em nome de algum surinamês e perde tudo quando volta para o Brasil.”

A paraense Nádia Ferreira, 39 anos, chegou ao Suriname em meados de 1997. Passou três anos no meio da mata trabalhando como cozinheira nos garimpos e recebia 40 gramas de ouro por mês, o equivalente a US$ 320. No início do ano passado conseguiu comprar, em parceria com um surinamês, duas máquinas para pôr no garimpo. “Quando resolvi visitar o Brasil, em novembro do ano passado, fui obrigada a doar a máquina para o surinamês e hoje não tenho nada”, lamenta. “Reclamei na polícia, mas eles disseram que aqui eu não tenho direito a nada.”

“Pretos da floresta” – Sem direitos e entocados na mata, os brasileiros viraram presas fáceis para um povo bastante violento. São conhecidos como “pretos da floresta” e compõem um terço da população do Suriname. Remanescentes de quilombos, vivem armados no meio da selva, comunicam-se através de um dialeto próprio, o taki taki, e formam uma espécie de Estado paralelo no Suriname. Na década de 80, criaram o Comando da Selva e durante seis anos sustentaram uma guerra civil contra o poder central. A guerra só terminou com um acordo: ficaram com o controle absoluto da floresta. Talvez por isso o governo do Suriname faça vista grossa a tudo o que ocorre com os brasileiros do garimpo. Até janeiro, sempre que os garimpeiros encontravam algum ouro, surgia um “preto da floresta” e se dizia dono da terra. Não havia o que discutir, e 10% do ouro garimpado era entregue a ele pelo dono do garimpo. Hoje, a regra dos 10% não vale mais. “Eles cobram o que querem de qualquer um e somos obrigados a pagar, pois andam armados e sempre nos preparam emboscadas nas trilhas da floresta”, conta o piauiense José Moura, 46 anos. “Muitos que tentaram sair da floresta tiveram que entregar tudo o que tinham como pedágio e outros já foram mortos.” Sem saber que o paraíso havia terminado, Moura chegou ao Suriname em julho deste ano. Desde então ele vive no meio do mato, não foi sequer uma vez à cidade. O máximo que consegue é chegar à currutela aos domingos.

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“Fiquei um mês deitado na rede por causa da malária, mas consegui juntar 300 gramas de ouro. Quero voltar para o Brasil, mas não sei quanto terei que pagar”, reclama. Moura sabe que o ouro garimpado lhe permite um rendimento de US$ 2,4 mil, mas para transformar o minério em moeda é preciso chegar a Paramaribo. O mistério é o que pode acontecer no caminho. “Não sei se terei que deixar 10%, 20% ou 80% com o dono da terra”, lamenta. Moura trabalha para um brasileiro que se identifica apenas como Osvaldo. “O pessoal tem que trabalhar para pagar o que investi, pois também eu não sei o que será de minha vida”, afirma. Há 15 dias, quando fazia a apuração do ouro encontrado, um “preto da floresta” cobrou de Osvaldo o equivalente a 25% do que foi arrecadado. “Quanto maior a quantidade encontrada, mais eles cobram”, diz.

Enquanto não conseguem deixar o mato, a tendência é que esses garimpeiros acabem gastando o que amealharam na própria floresta. Nas currutelas tudo custa muito mais caro do que na cidade e os surinameses impedem que os garimpeiros façam estoques pessoais de alimentos. A moeda corrente é o ouro. As barracas possuem pequenas balanças digitais para fazer a conferência dos pagamentos. Em sua barraca na currutela de Langa Tabiki, Bolsão, como é chamado o paraense Durval Silva, 47 anos, cobra o equivalente a R$ 5 por uma garrafa de Coca-Cola. Em Paramaribo, a mesma garrafa custa R$ 1. Bolsão vende de tudo, desde peças para os quadriciclos até alimentos e remédios. Ele garante, no entanto, que não fatura mais que US$ 800 por mês. “Para trabalhar, eu preciso pagar 15 gramas de ouro toda semana para o surinamês”, explica. As 15 gramas de ouro representam US$ 120. Nessa contabilidade, Bolsão ainda precisa incluir as taxas pagas pelo uso da estrada e o fornecimento gratuito de alimentação para os “pretos da floresta”.

Crianças reféns – A servidão imposta aos brasileiros que estão no meio da mata se reproduz também em Paramaribo, onde vivem as mulheres, os filhos dos garimpeiros e centenas de prostitutas, que têm até os passaportes apreendidos pelos donos de boates. Até janeiro, a vida era tranquila. Não faltava moradia, escola nem hospital. A ilegalidade fez tudo mudar. A paraense Daniele Carina Gomes, 21 anos, deixou Belém em 1998 para acompanhar os pais, que viviam no Suriname. Sua mãe cozinhava no garimpo enquanto o pai passava horas na lama em busca de ouro. Em setembro de 1999, com alguma economia, a mãe e a filha se mudaram para a capital. No início do ano passado, Daniele se apaixonou por um garimpeiro brasileiro e resolveu viver com ele. Viver como se vive nesse mundo do garimpo: ela em Paramaribo e ele na selva. Se viam dois dias a cada três meses. No início de outubro, Daniele foi levada às pressas pela mãe para o Diakonhessenthus, um hospital público na periferia da capital, pois estava para dar à luz um bebê. O pequeno Patrick nasceu saudável, de parto normal. Os problemas de Daniela começaram aí. Quando recebeu alta, o hospital enviou uma conta de US$ 8 mil. Como a família só dispunha de US$ 300, os médicos liberaram apenas a mãe e seguraram o bebê por sete dias. “Eles não deixavam sequer que eu visse ou amamentasse o menino. Só devolveram meu filho quando os amigos brasileiros conseguiram juntar o dinheiro para pagar a conta”, lembra Daniele.

“Essa situação é cada vez mais frequente e não temos a quem recorrer. Na polícia, apenas dizem que estamos ilegais e que nada pode ser feito”, afirma José Cardoso, presidente da Cooperativa dos Garimpeiros do Suriname. Por causa disso, é cada vez mais comum que mulheres e crianças filhas de brasileiros deixem Paramaribo para viver no mato, próximo do garimpeiro. O resultado é dramático. Longe das escolas e sem nenhuma assistência médica, as crianças são invariavelmente vítimas da malária e não têm nenhuma perspectiva de futuro. As mulheres, nos acampamentos, acabam ficando em completa ociosidade e não raro viram motivo de brigas entre os próprios garimpeiros. Raimundo Nonato Costa, por exemplo, um dos que trabalham para Cintra, não vê a hora de voltar para o Brasil. “Aqui eles cobram cada vez mais da gente. Tive que trazer para o mato a mulher e o Richard, meu filho de três anos, mas não vejo a hora de sair daqui. Isso não é vida”, conta.

A Embaixada do Brasil no Suriname não desconhece o problema. Porém, segundo o embaixador Ricardo Luiz Viana de Carvalho, pouco há para ser feito. “Já intermediei um encontro entre os ministros das Relações Exteriores do Brasil e do Suriname e penso que eles estejam buscando uma solução. Não tenho autonomia para decidir pelo governo surinamês”, diz. Questionado sobre as razões que possam ter levado o país vizinho a tornar ilegais os brasileiros garimpeiros, o embaixador diz que não sabe. Quando perguntado sobre o porquê desses brasileiros não serem deportados, ele é taxativo: “O ouro é responsável por quase 50% da riqueza do Suriname, e o surinamês não quer fazer esse trabalho pesado.”

Ferida na floresta

No Suriname, o garimpo é todo mecanizado. Em cada área explorada, chamada de barranco, os garimpeiros trabalham com o auxílio de duas máquinas. A primeira retira a água do solo que é disparada por mangueiras com uma força capaz de derrubar um homem de 80 quilos. É com esses jatos que os garimpeiros “varrem” a terra, formando um buraco, até que encontrem pedras no subsolo. Em alguns casos, esses buracos chegam a 50 metros de profundidade. A água se mistura à terra e corre pela mata por cerca de 30 metros, até que a corrente de água e terra encontrem a segunda máquina. Trata-se de uma bomba que joga a mistura de água e terra em uma caixa de madeira forrada por um carpete, que funciona como uma espécie de filtro. A água e a terra voltam para a mata, formando um lago que dará origem a outro ponto de garimpo. “Aos sábados desligamos as máquinas e retiramos do carpete o ouro conseguido na semana”, diz o garimpeiro Cintra. Esse tipo de garimpo impede a formação de barrancos, como os que eram vistos em Serra Pelada, com centenas de garimpeiros amarrados em cordas cavoucando as paredes. Nem por isso é menos devastador. “A força dessas máquinas acaba com o solo. Depois que os garimpeiros saem o que era floresta vira uma área de deserto”, diz o embaixador do Brasil no Suriname, Ricardo Luiz Viana de Carvalho. E é justamente na preocupação em defender o meio ambiente que pode estar a solução para o problema dos brasileiros que estão ilegais no Suriname. O embaixador aposta em um projeto já aprovado pela Organização Pan-Americana de Saúde para resolver o problema. São planos que visam à proteção do meio ambiente e o combate a malária já aprovados pelos governos do Brasil e do Suriname. Só falta liberar o dinheiro. “A idéia é ordenar a extração do ouro, delimitando áreas e dando total proteção aos garimpeiros, seja no aspecto legal, seja com relação à saúde”, diz Carvalho.

O rico cardosão

Não há brasileiro no Suriname que não conheça o endereço do piauiense José Cardoso Neto, 38 anos. Em 1998, ele fundou a Cooperativa dos Garimpeiros do Suriname, em Paramaribo, e desde então passou a exercer sua presidência. Nesses últimos três anos, Cardosão, como é carinhosamente chamado pelos brasileiros, tem feito as vezes de um competente assistente social. Ele socorre garimpeiros doentes, corre atrás de delegados para tentar tirar da cadeia aqueles que se metem em encrencas e até ajuda a apaziguar as brigas entre marido e mulher. Não se trata, porém, de um bom samaritano. A entidade criada por Cardosão está longe de ser uma verdadeira cooperativa e ele depende do bom relacionamento com os brasileiros do garimpo para manter de pé o seu próprio negócio. Cardosão está quase no topo da pirâmide social do garimpo. Ele é um dos poucos brasileiros legalizados no país e um dos oito agentes autorizados pelo Banco Central do Suriname a comprar e vender ouro. Em média, Cardosão paga ao garimpeiro US$ 7,7 por grama e revende para o Banco Central por US$ 8,2 a grama. “O Banco do Suriname sempre compra com um valor cerca de 30% abaixo do valor internacional”, afirma. Pelas mãos de Cardosão passam cerca de cinco quilos de ouro por semana. Apesar de um rendimento bruto semanal de aproximadamente US$ 2,5 mil, o ouro não é a única receita de Cardosão.

Na sede da cooperativa funciona uma central telefônica a serviço dos brasileiros, mas é preciso pagar US$ 0,80 por minuto. Além disso, Cardosão explora uma pequena loja com peças para os quadriciclos do garimpo, mantém um ourives para revender correntes e colares aos garimpeiros e intermedia a compra de passagens áreas para o Brasil. Para atrair os brasileiros à sua entidade, Cardosão também oferece alguns serviços gratuitos. Na maior parte dos garimpos, ele instalou estações de rádio e mantém uma central em Paramaribo. Na última semana, Cardosão estava brigando por um posto de vacinação para brasileiros.


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