De dezembro a junho, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no Amazonas, assemelha-se a um imenso oceano de água doce. É a maior floresta inundada e preservada de que se tem notícia. São 11 mil quilômetros quadrados situados na confluência dos rios Solimões e Japurá, uma área equivalente a 1.294 campos de futebol. Depois de sete meses submersa, a vazante na região é abrupta: em 45 dias, o nível das águas diminui 12 metros, ou 25 cm por dia. Do universo alagado
brotam cerca de três mil lagos coalhados de peixes e cercados
de garças-brancas-grandes.

O regime de cheias e vazantes explica uma particularidade de seu ecossistema. As mais de 300 espécies de peixes são responsáveis pela dispersão de sementes que perpetuam o ciclo vital da fauna e da flora. “Na maioria das florestas, essa função cabe às aves e aos mamíferos terrestres”, explica o biólogo mineiro Helder Queiroz, diretor científico do instituto de pesquisa de Mamirauá. No final da enchente, os peixes iniciam uma jornada em direção aos lagos. Nesse percurso, deixam no solo as sementes das plantas que germinarão com a chegada da seca, num processo de renovação permanente da natureza.

Nos períodos de cheia podem-se ver jacarés-açu (o maior da floresta, com até seis metros de comprimento), botos-cor-de-rosa, tucuxis e mais de 400 espécies de mamíferos aquáticos e terrestres. O boto-cor-de-rosa é responsável por uma das lendas mais famosas da reserva. À noite, ele se transformaria num belo rapaz que seduziria as moças da região, uma história que inspirou o filme homônimo. Até hoje, os olhos e a genitália do animal são considerados objetos de sedução.

Nesse paraíso ecológico – uma referência na comunidade científica internacional –, vivem integradas à natureza seis mil pessoas, espalhadas em pequenas comunidades ribeirinhas. Os moradores se locomovem em canoas e sobrevivem da pesca e da extração de madeira.

A rica biodiversidade de Mamirauá, que significa filhote de peixe-boi em língua geral (nheengatu) – mistura de tupi com francês, espanhol e latim –, levou cientistas de todo o mundo à região no final da década de 80. O biólogo Márcio Ayres foi um dos pioneiros. Ele foi atraído à floresta submersa pelo macaco uacari-branco, tema de sua tese de doutorado.
O animal de pelagem branca e cara vermelha é arisco e costuma sair à cata de sementes e frutas durante a noite, em bandos de até cinquenta. Não tem pêlo nenhum na cabeça e é um dos poucos primatas que sobrevivem em florestas inundadas, devido a sua grande agilidade. O uacari não pesa mais de quatro quilos e pula de uma árvore a outra,
em saltos de até 30 metros.

Com o empenho de Ayres e de outros cientistas que já atuavam em Mamirauá, a área passou a aliar as necessidades econômicas da população local à preservação ambiental. “O desafio era incluir a comunidade no projeto de preservação. Para isso foi feito um detalhado zoneamento da área de extração e pesca. Só pode ser extraída a madeira com mais de 45 centímetros de diâmetro e é proibido pescar pirarucu com menos de um metro e meio”, explica Queiroz. Maior predador da floresta, o pirarucu atinge três metros e pesa 200 quilos. O peixe foi quase extinto na década de 80, e após a adoção do sistema de pesca controlada tornou-se a principal fonte de sustento da população.

Mamirauá deixou de ser uma unidade de proteção integral, onde os moradores não são bem-vindos, e passou a ser uma área de uso sustentável, ou seja, uma região onde a comunidade extrai da mata o seu sustento, sem exauri-la. A reserva ambiental já foi tema de 120 trabalhos científicos. “Mamirauá é um marco. Lá, foram desenvolvidas tecnologias que podem ser aproveitadas em outras áreas de várzea da Amazônia”,
diz o biólogo João Paulo Capobianco, coordenador do Instituto Socioambiental. Entre elas estão a radiotelemetria, aparelho de rastreamento colocado nas nadadeiras para monitorar os animais aquáticos, o que permite conhecer a migração do grupo e seus períodos de reprodução. Exemplo de alta tecnologia em plena selva amazônica.