Dick Cheney já havia passado à história como o primeiro vice-presidente dos Estados Unidos a defender a tortura. Há meses ele vinha fazendo lobby no Congresso para derrubar o projeto de lei do senador republicano John McCain tornando ilegais os tratamentos “cruéis e desumanos” de estrangeiros capturados na chamada “guerra ao terror”. Sua injunções foram malsucedidas no Senado, que aprovou a peça legislativa por 90 votos contra 9. Esta margem não foi suficiente, porém, para desencorajar Cheney, que torce braços na Câmara dos Representante para que seja aprovada uma emenda que exime a CIA da proibição de maus-tratos. Quando seu escudeiro Lewis Libby renunciou ao posto de chefe de gabinete – momentos antes de ser indiciado por um promotor especial, num processo de vazamento de informação classificada –, o vice-presidente nomeou para o posto vago o advogado David Addington. Trata-se exatamente da pessoa que fez o documento-base de defesa da tortura para o governo Bush. Verificar-se-ia, na mesma semana, que a escolha não só era péssima em termos de méritos pessoais, mas também chegava em má hora. A manchete do diário The Washington Post, na quarta-feira 3, revelou que a CIA mantém prisões clandestinas em outros países – batizados de “locais negros” –, onde as torturas são feitas do modo metódico e corriqueiro. Implicaram-se, além de calabouços no Iraque, Afeganistão e Guantánamo – que já estavam sob escrutínio –, outros centros em países do Leste Europeu, não identificados pelo jornal. Além das repercussões negativas para a combalida administração de George W. Bush e seu vice, a lama voou para o outro lado do Atlântico, provocando promessas de investigação da União Européia, à qual são vinculados os países cúmplices do crime. Também geraram protestos que vão desde o Oriente Médio até Mar del Plata, na Argentina, onde o presidente Bush participava da Cúpula das Américas.

Subcontratos – De acordo com várias fontes dos serviços de inteligência americanos, desde 2001 o governo Bush vem subcontratando países para o aprisionamento e interrogatório de terroristas e combatentes estrangeiros. Já se sabia de centros de detenção no Afeganistão – notoriamente o de Salty Pit, perto de Cabul –, o de Guantánamo, em Cuba, e no Iraque, como o famigerado Abu Ghraib.
Em todos estes locais, prisioneiros foram torturados, humilhados, tiveram negados os mais básicos direitos humanos, e vários morreram nessas condições. Também se sabia que, desde 2002, masmorras na Tailândia eram usadas, juntamente com pessoal nativo, para as mesmas atividades. Neste país as atividades foram encerradas em 2003, depois que foram tornadas públicas num relatório sobre a questão. Também fecharam as portas de um setor secreto comandado pela CIA em conjunto com militares americanos, pois temiam-se investigações mais vigorosas do Congresso. O código de conduta das Forças Armadas é específico quanto ao tratamento que deve ser dado a prisioneiros, sejam eles soldados inimigos, sejam combatentes hostis.

A surpresa nas revelações de agora vem do Leste Europeu. O Washington Post, alegando preocupações do governo quanto à segurança do Estado americano e dos países envolvidos, não identificou os governos cúmplices. Sabe-se, porém, que faziam parte do ex-bloco socialista, sendo que um dos centros de detenção é uma ex-base soviética que foi modernizada, equipada e com pessoal treinado por americanos. Os suspeitos são a Bulgária – que se antecipou na negação de participação –, a Romênia, Polônia e a República Tcheca, que também rechaçou a acusação. Ela diz que recebeu proposta para envolvimento, mas não aceitou.

Polônia e Bulgária – Fontes de ISTOÉ no Pentágono, que pedem anonimato, afirmam que Polônia e Bulgária são países que lideram a banca de apostas nas desconfianças. “Os dois apoiaram a invasão do Iraque em primeira hora. Mandaram soldados ao país. Como diria Deep Throat (o informante secreto no caso Watergate): “Siga o dinheiro.” Há evidências de que os Estados Unidos ajudaram a reformar bases soviéticas naqueles países e em outros que estavam na esfera soviética. Porém, os gastos na Polônia foram maiores e sabe-se qual base teve maior ajuda. Quanto à Bulgária, acho que qualquer pessoa um pouco mais curiosa que for ao país acabará sabendo o endereço de centro de detenção de prisioneiros”, diz a fonte do Pentágono. Embora aponte estes dois países, a mesma fonte não exclui a possibilidade de outros estarem envolvidos. “No fim do caminho, quando forem conhecidas as verdades sobre este episódio, acho
que vamos ter outras nações européias envolvidas. Pode apostar que a Romênia também está neste esquema”, diz.

As tais prisões americanas no exterior contêm um número mínimo de 100 detidos. Trinta deles são considerados do alto escalão da Al-Qaeda, e teriam informações valiosas sobre os planos e funcionamento da organização. Os outros 70 não têm este status e alguns deles, segundo o Washington Post, não passam de pobres diabos laçados durante operações de caça a terroristas. A exportação de serviços de carceragem e interrogação brutal fere as leis dos países suspeitos – e por isso a União Européia já anunciou uma investigação –, mas também pisoteia a legislação americana. O presidente americano pode autorizar operações clandestinas através daquilo que é chamado de “Executive Order”, segundo a diretiva 12333. Contudo, isso não elimina o fato de que os EUA são signatários do “Tratado da Convenção de Genebra” e da “Convenção das Nações Unidas Contra Tortura e Outros Tratamentos Cruéis e Desumanos”, que definem condutas para o trato de prisioneiros de guerra, no primeiro caso, e dos direitos de qualquer outra pessoa, combatente ou não.

“Atuando fora do país, segundo o que acredita o vice-presidente e outros membros deste governo, a CIA não estaria violando as leis americanas”, diz o senador democrata Chuck Schumer. “Entretanto, tais ações violam acordos internacionais assinados pelo governo dos Estados Unidos. Também vão contra a lei de apropriações, pois o dinheiro usado para montar estruturas e treinamentos (mais de US$ 100 milhões) não teve aprovação do Congresso. Acima de tudo, estas ações de tortura e negação de direitos humanos vão frontalmente contra tudo aquilo que os EUA acreditam e deveriam representar. Se nós, americanos, sucumbirmos à barbárie na luta contra os terroristas, não somos melhores do que eles e não podemos justificar superioridade moral”, diz o senador.

“Não contente em exportar empregos nos setores de manufatura e informática, o governo Bush agora está também exportando os serviços de tortura. Ou seja: exporta mão-de-obra e mãos sujas”, disse a ISTOÉ o líder sindical Patrick O’Brian, da central AFL-CIO. Esta subcontratação de serviços não é nova. O governo Bill Clinton já costumava extraditar terroristas ou suspeitos a seu países de origem para serem interrogados e julgados. Nada de errado com esse procedimento, não fosse o fato de nações como Jordânia, Marrocos, Egito, Arábia Saudita e outras constarem da lista de violadores de direitos humanos e praticantes de torturas, de acordo com o próprio Departamento de Estado americano. “A diferença é que, no governo Clinton, ou em outros anteriores, não havia participação de agentes americanos na tortura. Hoje, a CIA é que comanda o espetáculo. E o financiamento destas atividades é feito com o dinheiro dos contribuintes americanos, que não aprovaram apropriações para este uso bárbaro”, diz o senado Schumer.