15/10/2003 - 10:00
A decisão do Palácio do Planalto de liberar o plantio de soja geneticamente modificada para a safra de 2004 no Rio Grande do Sul foi apenas o início do maior racha político na história do PT, o partido do presidente Lula. O bloco dos descontentes uniu ambientalistas de carteirinha, como o carioca Fernando Gabeira – que já anunciou sua saída do partido –, a deputados ligados ao Movimento dos Sem-Terra (MST), como Adão Pretto (RS), Luci Choinacki (SC) e Luiz Alfredo (CE). A dissidência já é maior do que a verificada na votação das reformas da Previdência e tributária, quando oito petistas votaram contra ou se abstiveram das votações. E o pior: o cisma da semana passada tem um cunho fortemente ideológico e alta capacidade de proliferação.
A direção do partido desistiu de punir os dissidentes porque teria
que sacrificar 35 deputados, todos contrários à aprovação da soja alterada. Assim que Fernando Gabeira anunciou sua saída, o presidente do partido, José Genoíno, avisou que nem o Palácio do Planalto nem
a direção nacional petista irão fechar questão sobre a votação da Medida Provisória 131, que autoriza o plantio e a venda de soja geneticamente modificada para resistir ao herbicida produzido pela empresa americana Monsanto. Foi uma manobra para evitar um
desgaste ainda maior e a punição de parlamentares históricos
que não abrem mão de suas convicções ambientalistas.
Ocupando tribunas opostas na disputa ruidosa, que monopolizou as atenções durante a semana passada, ficaram o carioca Gabeira e o deputado Paulo Pimenta, do Rio Grande do Sul. Por sua postura favorável aos transgênicos, o agrônomo Pimenta foi escolhido para ser o relator da medida provisória. Gabeira, que há anos empunha a bandeira do movimento verde, já havia desferido pesadas críticas à mudança de rumo do governo petista nas questões referentes à ecologia. Nos corredores do Congresso Nacional, o ex-exilado político se queixava da decisão presidencial que permitiu a importação de pneus usados do Uruguai e do Paraguai e reclamava da lentidão do governo em demarcar terras indígenas e em suspender o veto à propaganda de cigarros no Grande Prêmio de Fórmula 1. A gota d’água, porém, veio na segunda-feira 6, quando o ministro Roberto Amaral, da Ciência e Tecnologia, anunciou o plano nacional de enriquecer o urânio para servir de combustível aos reatores das usinas nucleares de Angra dos Reis. Outro estopim foi o apoio de prefeitos e deputados petistas à invasão do Parque Nacional do Iguaçu, um dos patrimônios naturais da humanidade eleito pela Unesco, o braço cultural e científico da Organização das Nações Unidas (ONU).
A incoerência na área ambiental é grande. O deputado federal Irineu Colombo (PT-PR), que já manifestou sua postura ecológica ao propor uma lei proibindo o cultivo de transgênicos quando era da Assembléia Legislativa do Paraná, este ano passou a ser o líder dos agricultores que desejam reativar a Estrada do Colono, que rasga o Parque do Iguaçu. Junto com outros produtores rurais, o deputado ajudou a reabrir 18 quilômetros de estrada, destruindo boa parte das florestas do parque, cuja interdição foi uma das bandeiras ambientalistas.
O presidente Lula tentará pessoalmente acabar com o incêndio que o Planalto provocou entre seus deputados mais fiéis. O governo está certo que conseguirá aprovar a MP da soja polêmica no Congresso. Para isto terá de contar com a oposição, quase que inteiramente favorável aos transgênicos. Assim como fez com os parlamentares com base eleitoral entre os servidores públicos na votação da reforma previdenciária, a cúpula petista abandonou os ambientalistas.
O constrangimento começou no governo. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, discípula do líder seringueiro Chico Mendes e ecologista histórica, teve que engolir uma medida provisória em que discordava de todos os artigos. Ela ameaçou com o pedido de demissão, mas resolveu permanecer no cargo na esperança de influenciar na elaboração do projeto de lei sobre biossegurança a ser enviado nas próximas semanas para aprovação no Congresso Nacional. A reconciliação do governo com ambientalistas depende desse projeto de lei. Se não agradar aos ecológicos, o PT corre o risco de perder quase metade da bancada.
O senador João Capiberibe (PSB-AP), que há duas semanas entregou o cargo de vice-líder do Planalto no Congresso em protesto pela liberação dos transgênicos, quer a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar por que o Palácio alegou falta de semente convencional de soja para liberar o plantio da transgênica, quando a Companhia de Abastecimento, um órgão do Ministério da Agricultura, informou que havia o dobro da quantidade necessária para o plantio da próxima safra. A outra batalha será travada na Justiça. O Supremo Tribunal Federal pediu mais justificativas ao governo para poder julgar as ações que questionam a constitucionalidade da medida provisória.
A deserção de Gabeira promoveu grande estardalhaço, mas não foi a única voz a apontar falhas na política ambiental do governo petista. Logo que a administração de Lula completou seis meses, o Instituto Socioambiental (ISA), uma das mais respeitadas ONGs ecológicas do País, elaborou um dossiê em que reclamava de algumas decisões polêmicas do governo na área ambiental. Mereceu destaque a promessa de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, e de uma central para gerar energia no rio Madeira, ambas suspensas por razões ambientais. A ONG também protestou contra o projeto de asfaltamento de um trecho da rodovia Cuiabá-Santarém. A obra, que motivou um debate acalorado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, serviria para escoar a produção de soja. Enquanto o Executivo e o Legislativo discutem a liberação do plantio e comercialização da soja transgênica, o ISA produziu um novo relatório, onde mostra que a monocultura da soja se expande sem controle na Amazônia e no Cerrado, “repetindo o modelo de desenvolvimento obsoleto e predatório”. O cultivo ao redor do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, dizem os ecologistas, estaria ameaçando as nascentes do rio Xingu, que atravessam o parque e da qual dependem as comunidades indígenas.
O governo se esforça para resolver a pendenga da soja contrabandeada da Argentina, mas não impede a marcha progressista da ciência. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já testa em campo algumas sementes e alimentos alterados geneticamente. Entre suas pesquisas está o mamão resistente a um vírus que causa sua podridão, o feijão preparado para resistir a um vírus que destrói 90% da produção nacional e uma alface capaz de produzir um gene contra a diarréia, que pode se transformar numa vacina. Para ampliar a produtividade nacional no campo, a estatal agropecuária firmou um convênio com a empresa alemã Basf para desenvolver uma soja resistente a herbicidas para concorrer com a polêmica soja da Monsanto. É um sinal de que a pesquisa científica pode ser a arma mais eficaz para garantir a soberania de uma nação.
|
“ O PT nunca foi um partido ambientalista ” |
ISTOÉ – Plantar soja transgênica agride o meio ambiente? Paulo Pimenta – Ela tem se mostrado mais ecológica porque evita o uso de herbicidas de efeito residual, que em dez anos contaminou o solo e a água de rios gaúchos. Os agricultores transformaram suas lavouras em experimento. Alguns estão na décima quarta safra transgênica. ISTOÉ – Por que esse tema causa ISTOÉ – Como área livre de transgênicos o Brasil teria mais espaço no Exterior? |
|