A decisão do Palácio do Planalto de liberar o plantio de soja geneticamente modificada para a safra de 2004 no Rio Grande do Sul foi apenas o início do maior racha político na história do PT, o partido do presidente Lula. O bloco dos descontentes uniu ambientalistas de carteirinha, como o carioca Fernando Gabeira – que já anunciou sua saída do partido –, a deputados ligados ao Movimento dos Sem-Terra (MST), como Adão Pretto (RS), Luci Choinacki (SC) e Luiz Alfredo (CE). A dissidência já é maior do que a verificada na votação das reformas da Previdência e tributária, quando oito petistas votaram contra ou se abstiveram das votações. E o pior: o cisma da semana passada tem um cunho fortemente ideológico e alta capacidade de proliferação.

A direção do partido desistiu de punir os dissidentes porque teria
que sacrificar 35 deputados, todos contrários à aprovação da soja alterada. Assim que Fernando Gabeira anunciou sua saída, o presidente do partido, José Genoíno, avisou que nem o Palácio do Planalto nem
a direção nacional petista irão fechar questão sobre a votação da Medida Provisória 131, que autoriza o plantio e a venda de soja geneticamente modificada para resistir ao herbicida produzido pela empresa americana Monsanto. Foi uma manobra para evitar um
desgaste ainda maior e a punição de parlamentares históricos
que não abrem mão de suas convicções ambientalistas.

Ocupando tribunas opostas na disputa ruidosa, que monopolizou as atenções durante a semana passada, ficaram o carioca Gabeira e o deputado Paulo Pimenta, do Rio Grande do Sul. Por sua postura favorável aos transgênicos, o agrônomo Pimenta foi escolhido para ser o relator da medida provisória. Gabeira, que há anos empunha a bandeira do movimento verde, já havia desferido pesadas críticas à mudança de rumo do governo petista nas questões referentes à ecologia. Nos corredores do Congresso Nacional, o ex-exilado político se queixava da decisão presidencial que permitiu a importação de pneus usados do Uruguai e do Paraguai e reclamava da lentidão do governo em demarcar terras indígenas e em suspender o veto à propaganda de cigarros no Grande Prêmio de Fórmula 1. A gota d’água, porém, veio na segunda-feira 6, quando o ministro Roberto Amaral, da Ciência e Tecnologia, anunciou o plano nacional de enriquecer o urânio para servir de combustível aos reatores das usinas nucleares de Angra dos Reis. Outro estopim foi o apoio de prefeitos e deputados petistas à invasão do Parque Nacional do Iguaçu, um dos patrimônios naturais da humanidade eleito pela Unesco, o braço cultural e científico da Organização das Nações Unidas (ONU).

A incoerência na área ambiental é grande. O deputado federal Irineu Colombo (PT-PR), que já manifestou sua postura ecológica ao propor uma lei proibindo o cultivo de transgênicos quando era da Assembléia Legislativa do Paraná, este ano passou a ser o líder dos agricultores que desejam reativar a Estrada do Colono, que rasga o Parque do Iguaçu. Junto com outros produtores rurais, o deputado ajudou a reabrir 18 quilômetros de estrada, destruindo boa parte das florestas do parque, cuja interdição foi uma das bandeiras ambientalistas.

O presidente Lula tentará pessoalmente acabar com o incêndio que o Planalto provocou entre seus deputados mais fiéis. O governo está certo que conseguirá aprovar a MP da soja polêmica no Congresso. Para isto terá de contar com a oposição, quase que inteiramente favorável aos transgênicos. Assim como fez com os parlamentares com base eleitoral entre os servidores públicos na votação da reforma previdenciária, a cúpula petista abandonou os ambientalistas.

O constrangimento começou no governo. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, discípula do líder seringueiro Chico Mendes e ecologista histórica, teve que engolir uma medida provisória em que discordava de todos os artigos. Ela ameaçou com o pedido de demissão, mas resolveu permanecer no cargo na esperança de influenciar na elaboração do projeto de lei sobre biossegurança a ser enviado nas próximas semanas para aprovação no Congresso Nacional. A reconciliação do governo com ambientalistas depende desse projeto de lei. Se não agradar aos ecológicos, o PT corre o risco de perder quase metade da bancada.

O senador João Capiberibe (PSB-AP), que há duas semanas entregou o cargo de vice-líder do Planalto no Congresso em protesto pela liberação dos transgênicos, quer a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar por que o Palácio alegou falta de semente convencional de soja para liberar o plantio da transgênica, quando a Companhia de Abastecimento, um órgão do Ministério da Agricultura, informou que havia o dobro da quantidade necessária para o plantio da próxima safra. A outra batalha será travada na Justiça. O Supremo Tribunal Federal pediu mais justificativas ao governo para poder julgar as ações que questionam a constitucionalidade da medida provisória.

A deserção de Gabeira promoveu grande estardalhaço, mas não foi a única voz a apontar falhas na política ambiental do governo petista. Logo que a administração de Lula completou seis meses, o Instituto Socioambiental (ISA), uma das mais respeitadas ONGs ecológicas do País, elaborou um dossiê em que reclamava de algumas decisões polêmicas do governo na área ambiental. Mereceu destaque a promessa de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, e de uma central para gerar energia no rio Madeira, ambas suspensas por razões ambientais. A ONG também protestou contra o projeto de asfaltamento de um trecho da rodovia Cuiabá-Santarém. A obra, que motivou um debate acalorado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, serviria para escoar a produção de soja. Enquanto o Executivo e o Legislativo discutem a liberação do plantio e comercialização da soja transgênica, o ISA produziu um novo relatório, onde mostra que a monocultura da soja se expande sem controle na Amazônia e no Cerrado, “repetindo o modelo de desenvolvimento obsoleto e predatório”. O cultivo ao redor do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, dizem os ecologistas, estaria ameaçando as nascentes do rio Xingu, que atravessam o parque e da qual dependem as comunidades indígenas.

O governo se esforça para resolver a pendenga da soja contrabandeada da Argentina, mas não impede a marcha progressista da ciência. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já testa em campo algumas sementes e alimentos alterados geneticamente. Entre suas pesquisas está o mamão resistente a um vírus que causa sua podridão, o feijão preparado para resistir a um vírus que destrói 90% da produção nacional e uma alface capaz de produzir um gene contra a diarréia, que pode se transformar numa vacina. Para ampliar a produtividade nacional no campo, a estatal agropecuária firmou um convênio com a empresa alemã Basf para desenvolver uma soja resistente a herbicidas para concorrer com a polêmica soja da Monsanto. É um sinal de que a pesquisa científica pode ser a arma mais eficaz para garantir a soberania de uma nação.

 

“Saio do PT pelo conjunto da obra de mau gosto”

ISTOÉ – Como explicar
as decisões do governo
nas áreas ambiental
e energética?
Fernando Gabeira –
Há uma crise mais profunda que não se limita ao PT ou ao Brasil. É a decadência da atuação política, hoje ditada pelos interesses das corporações e do mercado. Fazer política passou a ser a administração do fato consumado.

ISTOÉ – É o que está acontecendo no Brasil?
Gabeira –
O PT é a maior força do mundo no movimento por uma outra globalização. Internamente, está se deixando levar por pressões de gente equivocada. O governo federal não estava preparado para tratar da questão dos transgênicos, que vai marcar o rumo da economia agrícola, da segurança alimentar, da agricultura familiar e da sobrevivência ou não da agricultura convencional e orgânica.

ISTOÉ – O anúncio de que o Brasil pode exportar urânio enriquecido foi a gota d’água para sua saída?
Gabeira –
Estou saindo do PT pelo conjunto da obra de mau gosto de um governo que toma decisões em um núcleo fechado e antidemocrático. No programa nuclear, o compromisso era fazer auditorias. É no mínimo falta de sensibilidade política o mesmo ministro que defendeu a bomba atômica (Roberto Amaral, da Ciência e Tecnologia) anunciar que vamos enriquecer urânio.

ISTOÉ – Isto é um retrocesso político?
Gabeira –
Quando fui para o PT, pensava numa perspectiva
social-democrata em relação ao meio ambiente. Não contava
que parte do núcleo dirigente tivesse atitude semelhante à do
Leste Europeu, que aplicou uma visão de produtivismo estreito, sacrificando as variáveis ambientais.

ISTOÉ – A solução é proibir o uso dessas tecnologias?
Gabeira –
Não, mas o Brasil não pode optar pelo caminho dos transgênicos, por exemplo, sem antes tomar medidas de segurança.

 

 

“ O PT nunca foi um partido ambientalista ”

ISTOÉ – Plantar soja transgênica agride o meio ambiente?
Paulo Pimenta –
Ela tem se mostrado mais ecológica porque evita o uso de herbicidas
de efeito residual, que em dez anos contaminou o solo e a água de rios gaúchos. Os agricultores transformaram suas lavouras em experimento. Alguns estão na décima quarta safra transgênica.

ISTOÉ – Por que esse tema causa
tanto estrago?
Pimenta –
Não considero isso um debate ideológico. O PT nunca foi um partido ambientalista. Não podemos subordinar a ação de governo a um debate ambiental teórico nem submeter o calendário agrícola à lógica do Legislativo.

ISTOÉ – Como área livre de transgênicos o Brasil teria mais espaço no Exterior?
Pimenta –
Não encontrei ninguém que mostre qualquer país que não compre soja transgênica ou que se disponha a pagar mais pela soja convencional. Os setores com perdas na comercialização dos herbicidas são aliados dos que se opõem ao cultivo da soja transgênica. Por que não exigir relatório de impacto ambiental de lavoura convencional nas margens de rios, que usa veneno (agrotóxicos), inclusive nos assentamentos do MST?

 

O seleto clube dos nove

A decisão do governo de enriquecer urânio em escala comercial colocou o Brasil num seleto grupo de produtores de combustível nuclear. Os oito países detentores dessa tecnologia são Rússia, Japão, China, Alemanha, Inglaterra, Holanda, Estados Unidos e França. O objetivo inicial é reduzir a dependência do urânio importado da Alemanha. A meta seguinte será produzir combustível para abastecer as usinas nucleares de Angra 1 e 2, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro (foto). A terceira etapa será a entrada no rentável mercado internacional do urânio. O enriquecimento é um processo químico e físico que torna o urânio, encontrado em abundância no Brasil, capaz de gerar energia nuclear. Apesar de o Brasil ter a sexta maior reserva mundial de urânio e de exportar o minério bruto, o País hoje é obrigado a importar urânio enriquecido para alimentar seus reatores nucleares.

O programa nuclear brasileiro sempre esteve envolto num mar de críticas. Angra 1 levou 13 anos para ser construída e só entrou em operação em 1985. Feita com a tecnologia da americana Westinghouse, ela se tornou uma das mais polêmicas do mundo. Interrompeu seus trabalhos mais de 20 vezes entre 1998 e 2001, o que lhe rendeu o apelido de usina vagalume. Fruto do controvertido acordo nuclear entre Brasil e Alemanha, de 1975, Angra 2 foi inaugurada em 2001, com o dobro da capacidade de geração de energia elétrica (1.300 megawats) da primeira unidade. No governo atual, há quem admita a construção de Angra 3, já que o Brasil gasta US$ 20 milhões ao ano na manutenção dos equipamentos estocados para seu funcionamento.

Desde que mostrou interesse em desenvolver um programa nuclear, o Brasil sofreu pressões internacionais de quem temia o domínio da tecnologia para construção de bombas. O País já deu garantias de que não planeja fazer artefatos nucleares. “O Brasil não pode fabricar bombas, pois a proibição é garantida na Constituição”, assegura Odair Dias Gonçalves, presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear. O País assinou dois tratados internacionais se comprometendo a não usar seu conhecimento para fins bélicos. “Não seria um bom negócio. Enriquecer o urânio a 90%, concentração necessária para fabricar bombas, sairia muito caro. Sem contar que hoje elas usam plutônio e não urânio”, explica o físico Aquilino Senra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nos primeiros dias de seu governo, porém, o ministro Roberto Amaral causou controvérsia ao demonstrar simpatia pela idéia de produzir bombas atômicas.

Os entusiastas da retomada pacífica do programa nuclear são muitos. Segundo a comunidade científica, entre as principais vantagens de enriquecer urânio está a economia. O País vai poder aumentar a sua produção de energia a um custo muito menor, e terá independência tecnológica e soberania sobre o mercado internacional. “Com as dificuldades que enfrentamos, é uma conquista termos conseguido dominar essa tecnologia”, diz Senra. “Esse anúncio veio completar um ciclo que começou há quase 50 anos. Após 23 anos de pesquisa, finalmente o País tem condições de produzir combustível para acionar seus reatores”, comemora o físico Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Cláudia Pinho e Hélio Contreiras