Em novembro de 2002, a reportagem “A CIA continua no Brasil” de ISTOÉ comprovou com documentos as sorrateiras ações da agência americana no Brasil. À época, o ex-corregedor da Polícia Federal, Artur Lobo Filho, que investigou as atividades ilegais da CIA em território nacional, em uma sindicância que evaporou nos subterrâneos da Polícia Federal, disse que a ingerência externa na PF é corriqueira. “Tenho quase certeza de que isso acontece até hoje. Quer ver? Por que a direção atual quer tirar o Getúlio Bezerra da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) e não tira? Nem o ministro tira. Os americanos não deixam. Aí é o velho esquema: paga quem quer, mantém quem quer e xereta o que quer. Isso não é invasão de soberania? É coisa muito pior. Grampearam o presidente.” A afirmação indignada de um policial da elite da PF, hoje aposentado, revela a dimensão da tolerância da PF às bisbilhotices ianques em troca de pequenos agrados pecuniários. O presidente citado por Lobo é Fernando Henrique Cardoso, fisgado em um grampo tratando do bilionário projeto de vigilância da Amazônia – Sivam – com o embaixador Júlio César dos Santos. O amigo dos americanos, delegado Getúlio Bezerra, foi promovido. Hoje, ele tem mais poder no comando da Diretoria de Combate ao Crime Organizado, que manda na DRE.

Lobo tinha razão. O tempo passou e a PF volta a estar no centro da discussão sobre a ingerência externa. No começo de setembro deste ano, o procurador Luiz Francisco de Souza recebeu uma denúncia de que a área de entorpecentes da PF mantinha uma conta corrente – número 284.002-2, agência 3476-2 do Banco do Brasil – abastecida secreta e regularmente pelo DEA – Drug Enforcement Administration –, a agência de combate ao narcotráfico dos EUA. O procurador, que investiga contratos da PF, pediu as informações sobre a volumosa conta – US$ 5 milhões só este ano. As respostas foram dadas no dia 12 de setembro pelo delegado Getúlio Bezerra e pelo Coordenador-Geral de Polícia de Repressão a Entorpecentes, Ronaldo Urbano. Em um documento obtido por ISTOÉ, a cúpula da Federal confirma a existência do fundo secreto, só conhecido por figurões da polícia e invisível à fiscalização e controle das autoridades brasileiras, como o Congresso, a Receita e o Tribunal de Contas, o que é ilegal. A PF omitiu uma informação relevante: que a conta continua sendo movimentada pelo próprio Getúlio Bezerra. ISTOÉ fez um depósito de R$ 1 na conta, na quinta-feira 9, e o recibo comprova que saiu em nome de Bezerra. Luiz Francisco enviou uma recomendação à PF para que o dinheiro seja incluído no orçamento formalmente para que deixe de ser um fundo secreto e se torne um fundo público.

A PF alega que um acordo de 1995 permite o duto livre das verdinhas americanas para serem gastas aqui e geridas pelo policial brasileiro. Na resposta da PF ao procurador, surge a principal ilegalidade da conta clandestina: “Esclarecemos que a prestação de contas dos recursos financeiros destinados aos projetos sob responsabilidade da Polícia Federal no acordo, é encaminhada regularmente à Embaixada dos Estados Unidos da América, através da Seção de Assunto sobre Narcóticos – NAS/USA”. Os policiais brasileiros que administram o orçamento paralelo de dólares só dão satisfação aos vizinhos mais prósperos acima do Equador. Não é a primeira vez que isso acontece. A revista Carta Capital denunciou que na operação Cobra, envolvendo o combate do narcotráfico entre Colômbia e Brasil, houve envio de dinheiro externo pelo Citibank via contas CC5. Agora, uma minuciosa investigação da PF pode enfrentar sobressaltos porque as provas produzidas na Operação Diamante estão cheias de digitais dos americanos.

A operação Diamante – iniciada pelo ofício 300/2000, do delegado Getúlio Bezerra – é o orgulho da corporação. Após três anos de investigação em dez Estados, uma das maiores quadrilhas do tráfico internacional, capitaneada por Leonardo Mendonça – preso em Goiânia –, foi desbaratada. Mendonça, ao lado do traficante Emival das Dores, é uma celebridade nos EUA. Os dois estão entre os dez mais procurados pelo DEA. A operação Diamante rendeu 28 prisões, e ilustres nomes nacionais caíram em desgraça. Os menos ilustres foram parar na cadeia. Um dos resultados foi a dupla renúncia do deputado federal Pinheiro Landin e o afastamento do cargo de dois magistrados: Vicente Leal, ministro do STJ, e Eustáquio Silveira
desembargador do TRF-DF. Eles foram acusados de vender sentenças
em favor de traficantes presos na investigação. Segundo a PF, o esquema era comandado pelo ex-deputado Landim (CE). O processo
está recheado de gravações.

O motorista de Landin, José Antônio de Souza – preso com dinheiro do tráfico –, é o pivô do rolo. O advogado dele, Uarian Ferreira, entrou na Justiça com um pedido explosivo. Ele pede a anulação das escutas telefônicas. O que sustenta o pedido de Ferreira são os CDs, que trazem os milhares de horas com gravações autorizadas judicialmente de toda a turma investigada. Ao abrir os CDs, Ferreira constatou que 22 gravações têm como autora, oficializada no processo, a embaixada americana. Ele anexou ao pedido as folhas impressas do programa do computador que identifica a Embaixada USA como autora de grampos. O relatório intitulado de Final da Operação Diamante, de 21 de janeiro de 2003, é um dos CDs que trazem como autor a Embaixada USA e “gravado por Embaixada USA”. Num ofício à Justiça goiana, o delegado Ronaldo Urbano confirma: “O equipamento usado para gravar parte dos CDs é um exemplo típico, quando policiais manifestaram a necessidade da aquisição de um Pentium III-833, com gravadora de CD, o que foi providenciado pela embaixada americana, que adquiriu o referido computador no comércio de Goiânia…”, explica a PF, justificando que, enquanto não se concretizava a doação do micro, os programas estavam licenciados em nome da embaixada. Urbano invoca a regularidade das escutas com base no acordo entre Brasil e EUA. Mas o tal acordo exige um prévio Memorando de Entendimento entre os dois países com metas, equipamentos e previsão de gastos – em real e dólares. “Em 2000, quando foi iniciada a operação, não foi firmado nenhum Memorando e nos anos seguintes não constam recursos para esta operação. É dinheiro ilegal à disposição de federais brasileiros, que, para lançarem mão dele, basta apenas “manifestar a necessidade”, acusou Ferreira após rastrear no Itamaraty os tais memorandos da Operação Diamante. Enquanto jorram dólares no orçamento paralelo, a PF do orçamento real (R$ 125 milhões/ano) fecha portas por atraso de salários e falta de material.

 

À margem

O procurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado, é um especialista em gastos públicos há nove anos
e garante: “Fundo secreto da
PF é ilegal”

ISTOÉ – É possível a PF manter este fundo sigiloso?
Lucas Furtado
– A autoridade pública tem que prestar contas ao TCU. O Estado democrático não admite sigilo absoluto.

ISTOÉ – É só a questão da prestação de contas?
Furtado
– Fere também a concepção de soberania. É complicado, por decisão deles (PF), manter o sigilo da conta. A fiscalização não pode ser feita por autoridade estrangeira.

ISTOÉ – O sr. sabia desse fundo?
Furtado
– Nunca ouvi falar. A lei obriga que se diga onde o dinheiro está sendo gasto.

ISTOÉ – E a escolha de quem vai gastar o dinheiro?
Furtado
– A escolha deve se dar pela relação de confiança.
O Congresso ignora esse fundo. A conta está totalmente à
margem do processo.

 

Agentes do DEA nos interrogatórios

mival das Dores é apontado como elo entre Fernandinho Beira-Mar e Leonardo Mendonça e a conexão do tráfico com a guerrilha colombiana, Farcs. Emival diz que foi interrogado por agentes do DEA em sedes da PF.

ISTOÉ – Você teve contato com agentes do DEA?
Emival das Dores
– Vieram dois caras do DEA lá na prisão, em Goiânia. Me disseram que se eu fosse preso em outro país me davam 600 anos de prisão. Não me lembro o nome deles.

ISTOÉ – Quem estava na conversa?
Emival
– Estavam o delegado, doutor Rui e o João Álvaro (agente da PF que participou da operação Diamante). Foi em janeiro de 2003.

ISTOÉ – Você estava com advogado?
Emival
– Não tinha advogado. Estava sozinho. Perguntaram de tráfico no Brasil e da guerrilha (Colômbia). Pedi o advogado e não chamaram.

ISTOÉ – Foi só uma vez?
Emival
– Uma vez vieram aqui (PF de Brasília). Foram os mesmos de Goiânia, com a mesma pergunta. Eu disse que não queria falar e eles foram embora. Falei isso para o juiz.