Para um país que tem sua população majoritária descendente de africanos, o Brasil praticamente desconhece a cultura do continente-matriz. Ou, pior ainda, compactua com o estereótipo mundial que conceitua a arte da África como primitiva, religiosa, menos rica. Na tentativa de apagar esta imagem errônea, o Centro Cultural Banco do Brasil carioca traz ao Brasil a espetacular mostra Arte da África, a ser aberta ao público na terça-feira 14, com 300 peças vindas do acervo do Museu Etnológico de Berlim. Depois do Rio de Janeiro, a exposição, que tem curadoria do alemão Peter Junge, se divide em duas e, em janeiro, segue para Brasília e São Paulo. Além da beleza dos objetos – esculturas, máscaras, insígnias, adereços da realeza, instrumentos musicais, objetos pessoais –, o evento é um fantástico relato histórico de uma civilização com elementos suficientes para se compreender a cultura de determinado povo, o papel dos antepassados e seu significado para a integração da sociedade, como explica Junge. “Há dois mundos. Um real e outro no qual viveram
nossos antepassados. Essa exposição é um elo entre eles.
Não há como separá-los.”

A mostra também tem seu caráter lúdico. Logo na entrada, está montado no chão um mapa gigantesco do continente africano cercado por cinco tambores. Ao serem tocados pelo público, eles acionam retroprojetores que emitem nas peles dos tambores imagens de objetos correspondentes a diferentes regiões. Mais adiante, na sala de instrumentos musicais, ouvem-se sons uníssonos, como numa orquestra. Ao se aproximar de cada um dos instrumentos, contudo, o visitante escuta com nitidez o som produzido individualmente. Mas a complexidade da cultura africana ganha uma de suas melhores traduções na sala das máscaras. Um filme exibe africanos usando as mesmas máscaras que estão nas vitrines. O recurso mostra como as peças são utilizadas, em quais circunstâncias, com que objetivo e por qual etnia.

No primeiro andar ficam os objetos mais antigos, como o saleiro de marfim de Serra Leoa, do século XV. Os mais recentes datam do século XX, entre eles os adornos peitorais masculinos. É especialmente deslumbrante a parte dedicada a objetos de uso pessoal: braceletes, anéis, tamancos de metal e copos, todos simbólicos, para demonstrar o prestígio de seus donos. Há curiosidades como apoiadores de nuca, privilégio exclusivo dos homens. Muitos trabalhos não têm autoria reconhecida, um “detalhe” que toca num dos grandes conflitos entre a Europa que hoje preserva a arte africana e a Europa que, no passado, se apropriou de expressões artísticas africanas sem dar o devido crédito. Junge diz que é difícil responder se “os artistas das formas modernas clássicas simplesmente copiaram a arte da África ou, para dizer em termos mais cordiais, nela buscaram inspiração ou se reconheceram”. Viola König, diretora do Museu Etnológico de Berlim, é mais direta. “Os europeus simplesmente tomaram a idéia e a forma e não deram autoria.” Ela frisa que esse debate no mínimo serve para acabar com a idéia de que tudo o que é originário da África é “arte popular anônima”.

Trazer os tesouros africanos para o Brasil foi idéia de Alfons Hug, curador da Bienal de São Paulo e diretor do Instituto Goethe no Rio de Janeiro. O momento político do País teve motivação importante. “Este novo governo faz questão de reatar relações políticas e culturais com a África, relações um pouco negligenciadas nos últimos anos.” No entanto, há muitas exigências para se realizar um evento deste porte. É compreensível, sobretudo porque há obras orgânicas, feitas de ossos, erva seca, casca de árvore, couro, etc. Tais precauções, como conta Hug, dizem respeito à umidade, temperatura, segurança e luminosidade. Alguns objetos precisam estar na condição ideal todo o tempo, até para serem transportados de uma sala para outra. Diante da declaração do ministro da Cultura, Gilberto Gil, os cuidados não poderiam mesmo ser menores. “O reencontro com a arte africana é acima de tudo um momento de memória. É a reafirmação de nosso compromisso genético com uma arte viva que produz vida.”