O instinto mais aguçado no animal político é a sobrevivência. Às vésperas do prazo-limite para trocar de partidos – encerrado na sexta-feira 3 –, mais de uma centena de deputados e senadores resolveram esquecer o que disseram na última eleição e trocaram de partido. A grande maioria desembarcou em legendas mais à esquerda, portanto mais afinadas com os atuais inquilinos do poder federal para disputar a eleição municipal do ano que vem. O troca-troca só é possível porque a legislação é atrasada e admite a mudança de partido como um ato corriqueiro. Apesar das promessas, o atual governo do PT não mexeu uma palha para aprovar a fidelidade partidária e impedir a cooptação que tanto condenava quando era oposição.

A novidade nesse intercâmbio ideológico é a aliança que o PT começou
a alinhavar com o maior partido do Congresso, o PMDB, cuja indefinição ideológica é conhecida. A aliança é um teste de compatibilidade entre
os dois, visando à eleição de 2006, quando o PMDB já planeja indicar o vice de Lula para a reeleição. Pelas conversas iniciais, em 2004 os dois partidos irão priorizar chapas únicas e, onde não for possível, tentarão fazer o acordo no segundo turno. Ninguém abriria mão de candidatos competitivos. Das 27 capitais, em pelo menos cinco, esse casamento
é impossível diante da rivalidade histórica dos dois partidos. “O PT
ganhou poder, mas não ganhou a eleição. Temos apenas 192 prefeitos em mais de cinco mil municípios”, diz José Genoino, presidente do PT, mostrando a face mais pragmática de um partido que não abria espaços nem para aliados. O sonho do PT, que hoje administra oito capitais
(São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, Goiânia, Belém, Aracaju e Macapá), é dobrar este número e ainda eleger prefeitos em 90 grandes municípios com mais de 200 mil eleitores. Outro foco de grande atenção do PT serão as chamadas cidades-pólo, como Ipatinga (MG), Santa
Maria (RS) ou Quixadá (CE), pelo impacto eleitoral que exercem em
suas regiões de influência.

A maior rivalidade entre os novos parceiros será em Porto Alegre. O PT – pela primeira vez sem necessidade de prévia – conseguiu um consenso em torno do ex-prefeito Raul Pont, companheiro do ministro Miguel Rossetto e da senadora Heloísa Helena, na tendência Democracia Socialista. O Palácio do Planalto tirou os moderados da disputa e amansou o partido. Na sexta-feira 3, o próprio presidente do PT, José Genoino, foi a Porto Alegre para abençoar a paz no Sul. O PMDB deve enfrentar Pont com o deputado federal Mendes Ribeiro. O PSDB, sempre irrelevante no Sul, vai insistir com a deputada Yeda Crusius.

No Rio de Janeiro, os petistas devem lançar o deputado Jorge Bittar. Embora aliado, o PMDB terá candidato próprio, o ex-prefeito e atual vice-governador, Luis Paulo Conde – uma exigência feita na filiação de Anthony Garotinho ao partido. Cada vez mais longe do binômio PT/PMDB, o PFL vai apresentar o nome mais forte nas grandes capitais, o do atual prefeito César Maia. O PT e o PMDB podem se encontrar no segundo turno. Pelos tucanos, corre por fora a juíza e deputada Denise Frossard. Os antigos caciques do PMDB foram empurrados para a periferia. O ex-governador Moreira Franco vai atravessar a ponte e disputar a prefeitura de Niterói, cidade que já administrou.

O divórcio municipal entre PT e PMDB se repete no Recife e em Salvador, onde o líder petista, Nelson Pellegrino, deve enfrentar o oposicionista Geddel Vieira Lima, do PMDB. O grupo de ACM, desgastado pelos grampos ilegais e estremecido com o atual prefeito Antônio Imbassahy (PFL), ainda não definiu candidato e o ex-deputado Benito Gama é o nome do PTB. Salvador é o único lugar no País que pode unir PSDB e PT contra o candidato de ACM. Em Belo Horizonte, o PT já carimbou o passaporte do atual prefeito, Fernando Pimentel, mas o PMDB quer um candidato próprio, e um acordo entre os dois só aconteceria no segundo turno, se houver. O candidato do PFL em Belo Horizonte deve ser Roberto Brant, ex-ministro da Previdência de FHC. O governador tucano Aécio Neves tenta convencer o senador Eduardo Azeredo, que não parece animado a ir para o sacrifício. Se não tiver candidato próprio, os tucanos podem fazer uma chapa com Brant.

Em São Paulo, a prefeita Marta Suplicy é a única do País que tem o presidente Lula como cabo eleitoral escancarado. Ela conta ainda com as bênçãos da direção do partido para obter o apoio do PMDB. O deputado José Pinotti – ligado ao ex-governador Orestes Quércia – acalentava a esperança de disputar a prefeitura pelo PMDB, mas deixou o partido na quarta-feira 1º e foi para o PFL para bater de frente com o PT. O que pode fragmentar o voto de esquerda na capital paulista é a candidatura da ex-prefeita Luiza Erundina pelo PSB. No maior colégio eleitoral do país, vários tucanos abrem as asas para a disputa, como o presidente do partido, José Aníbal, e o deputado Walter Feldman. A decisão deve ficar por conta do governador Geraldo Alckmin, hoje o grande cabo eleitoral dos tucanos. O PSDB quer atrair o PFL para a vaga de vice, de olho no tempo de televisão, e enfrentar o latifúndio que a aliança PT, PMDB e PL terá no horário gratuito, 40% do tempo total.

Em Florianópolis, o PMDB quer a cabeça da chapa e lembra que já
cedeu a presidência da Assembléia para o PT. O adversário de todo mundo, como sempre, será o clã Amin da atual prefeita, Ângela Amin (PP), bem avaliada no ranking dos melhores prefeitos das capitais. No outro extremo do País, o deputado Jader Barbalho (PMDB) mostra que, apesar dos desgastes, ainda dá as cartas no jogo político local. Ele admite a aliança com o PT ou com o PSDB. O que vai definir para onde
irá o grupo dele é a reciprocidade. Quem apoiar seu filho, o deputado estadual Helder Barbalho, no segundo maior colégio eleitoral do Pará – Ananindeua –, levará a bênção da família Barbalho em Belém. O PT deve lançar o deputado federal Paulo Rocha como candidato e os tucanos ainda não definiram nomes.

Estranho mesmo é o emaranhado político no Maranhão, que vive sob a batuta do maior entusiasta de Lula no plano federal, o presidente do Senado, José Sarney (AP). Lá o alquimista Sarney, que fez a química entre PMDB e PFL, irá apoiar Ricardo Murad (PSB), que denunciou o irmão Jorge Murad e a cunhada Roseana Sarney (PFL) na eleição presidencial do ano passado. A confraria de Sarney não quer nem ouvir o nome que o PT está lançando em São Luís, o juiz Flávio Dino, irmão do procurador Nicolau Dino, o comandante das investigações do escândalo da Lunus que implodiu as pretensões presidenciais de Roseana. O PSDB deve lançar o ex-governador João Castelo. Em Fortaleza, PMDB e PT devem se unir, mas para apoiar o favorito Inácio Arruda, do PCdoB. Essa costura está sendo feita a quatro mãos pelo líder do PMDB, Eunício Oliveira, e pelo presidente do PT, José Genoino.

Na última eleição municipal, o PT ganhou apenas 192 prefeituras em cidades médias e grandes, mas exibiu orgulhoso os 11,9 milhões de votos dados ao partido em todo o Brasil, o equivalente a 14,1% de todo o eleitorado nacional. Chegou nos calcanhares das legendas que controlam os grotões eleitorais. O PMDB conquistou 1.257 municípios pequenos, que representaram 15,7% dos votos, seguido pelo PSDB – que tinha o presidente da República –, com 990 prefeituras e 16% dos eleitores, e pelo PFL, com 1.028 prefeitos eleitos e 15,4% dos votos. Os petistas esperam usar e abusar da estampa de Lula para aumentar o número de votos dados ao partido e conquistar as prefeituras de grandes cidades. Para isso, vai unificar a campanha e evitar que temas federais e incômodos, como desemprego e violência, contaminem a eleição municipal, tradicionalmente dominada por temas como transporte urbano, taxa de luz, IPTU e outras demandas locais. Tudo que o PT não quer é que a eleição municipal se transforme numa espécie de plebiscito do governo Lula. “Claro que vamos federalizar a eleição. O PT não vai conseguir fugir dessa discussão, e a eleição municipal será uma prévia de 2006”, diz o coordenador da eleição municipal do PFL, Saulo Queiroz. Distantes da dupla PT/PMDB, PFL e PSDB farão alianças no maior número possível de capitais. Os tucanos acham que os sete governadores do partido serão fundamentais para o crescimento do PSDB. “Somos oposição. Não vamos compor com o PT em nenhum lugar”, sentencia o presidente dos tucanos, José Aníbal.

 

Mudança radical

De liberal a socialista. De Curitiba para o Rio de Janeiro: um salto de 835 quilômetros. No tradicional troca-troca partidário, Jaime Lerner radicalizou. Depois de administrar Curitiba três vezes (de 1971 a 1975; de 1979 a 1983; e de 1989 a 1992) e de governar o Paraná duas vezes (de 1995 a 1998; e de 1999 a 2002), Lerner está de olho na Cidade Maravilhosa. Por isso trocou o PFL do Paraná pelo PSB do Rio, que ficou raquítico com a saída de Anthony Garotinho, hoje no PMDB, junto com a governadora Rosinha Matheus. O casamento de Lerner com o PSB de Miguel Arraes supre a carência dos socialistas – que agora têm uma opção para disputar
a sucessão do prefeito César Maia (PFL). Atual presidente da Associação Internacional dos Arquitetos, Lerner explica que sua mudança de domicílio eleitoral não foi aleatória: já trabalhou várias vezes para governos do Rio. A primeira vez foi em 1975, ao presidir
a Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana, a convite do então governador Faria Lima. Depois, colaborou com
Leonel Brizola, quando era do PDT: foi coordenador estadual de transporte e assessor para questões metropolitanas, quando criou faixas seletivas para os ônibus.