Tudo indica que a safra de soja deste ano será inesquecível. Antes mesmo de qualquer definição sobre a legalidade dos plantios geneticamente modificados, 150 mil famílias do Rio Grande do Sul ameaçavam iniciar o plantio das sementes transgênicas contrabandeadas da Argentina, que foram cultivadas e vendidas ao longo de 2002, apesar de proibidas pela Justiça. Num roteiro digno de novela mexicana, o governo atropelou sua principal ambientalista, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, ao editar a Medida Provisória 131, que autoriza o plantio de soja modificada em todo o País.

A decisão provocou a primeira crise do governo Lula. Marina ameaçou pedir demissão diante do constrangimento de ter que engolir uma decisão contrária a uma de suas bandeiras políticas mais importantes. Para evitar um desgaste maior, o Palácio do Planalto aceitou inserir no texto algumas exigências dos ecologistas. Proibiu o plantio da chamada soja maradona no entorno das unidades de conservação ambiental, nas regiões consideradas prioritárias para a preservação, em terras indígenas e ao longo dos rios que servem para o abastecimento de água.

A ministra exigiu que no prazo de até seis meses fosse feito um estudo sobre o impacto ambiental das sementes alteradas. E que os fazendeiros assinassem um termo de compromisso assumindo a responsabilidade jurídica por eventuais desastres. Marina sabia que a guerra interna no governo estava perdida desde antes da viagem do presidente Lula à reunião da ONU, em Nova York. Sua estratégia foi aumentar a pressão para evitar uma MP ainda mais desastrosa. Conseguiu uma derrota parcial: só os agricultores que já disponham de sementes modificadas poderão cultivá-las este ano. A MP definiu o prazo até dezembro do próximo ano para o comércio da soja plantada a partir de 1º de outubro. Se os agricultores não venderem todo o produto até o final de 2004, terão que incinerar o restante.

Marina Silva teve que jogar duro. Na quarta-feira 24, ao receber a solidariedade de alguns deputados petistas, ela recordou Chico Mendes e sua luta pelo meio ambiente. E chorou. A essa altura, a batata quente de Lula já tinha deixado confuso o vice-presidente José Alencar. “Isso confronta a legislação brasileira. E o pobre coitado do presidente em exercício, lá de Minas Gerais, tem que assinar essa medida”, lamentou, durante um seminário no Itamaraty.

Para dividir responsabilidades, Alencar formou uma comissão e promoveu um último debate. Da reunião participaram Marina Silva e seus principais assessores, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, Roberto Rodrigues, da Agricultura, Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, e o advogado-geral da União, Álvaro Rodrigues da Costa. No meio do tiroteio, o governo optou pela governabilidade. É que a bancada ruralista do PMDB, liderada pelos gaúchos, ameaçava dificultar a aprovação das reformas previdenciária e tributária, pelo Senado. O texto final da MP só foi divulgado às 9h da noite da quinta-feira 25, depois de um dia inteiro de discussões, comandadas por um angustiado presidente em exercício.

Indecisão – A possibilidade de batalhas jurídicas caso a MP mantivesse o espírito de liberação total foi uma das preocupações de Alencar. A solução foi autorizar para plantio apenas a soja transgênica em poder dos agricultores gaúchos. Ainda assim, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, avisou que vai analisar a MP, já que há decisões judiciais anteriores proibindo o plantio de transgênicos. “A preservação do meio ambiente e a saúde das pessoas são itens que não podemos deixar de considerar”, disse Fonteles.

Mesmo com a permissão de sementes geneticamente modificadas, outras restrições previstas na MP foram comemoradas pelos ambientalistas, dentro e fora do governo. Para plantar soja transgênica, mais produtiva, os agricultores terão que comprar as sementes produzidas pela americana Monsanto, única indústria química a produzir, ao mesmo tempo, as sementes geneticamente modificadas e também o herbicida Roundup, que combate ervas daninhas sem destruir a lavoura. “A Monsanto disse que vai cobrar royalties atrasados pelas sementes contrabandeadas. Falam em US$ 16 por tonelada, o que dá um dólar por saca e pode comer o lucro do produtor”, ataca o deputado estadual gaúcho frei Sérgio Gorgen (PT).

A confusão foi tanta que ficou difícil até para os leigos se posicionarem. O escritor Luis Fernando Verissimo resumiu bem a situação. Sua posição era um claro e firme “não sei”. Como a grande maioria da população, Verissimo está em cima do muro. Se for levado em conta o que dizem os cientistas, as possibilidades abertas pelo plantio de transgênicos são promissoras. Sob o ponto de vista dos consumidores, sempre fica a dúvida sobre a segurança desses alimentos à saúde.

A comunidade científica deixou clara a sua posição. Cerca de 800 cientistas internacionais reunidos em Recife para um simpósio latino-americano sobre transgênicos elaboraram um documento endereçado ao governo. A chamada Carta de Recife foi assertiva: “o debate ideológico e desprovido de fundamentação científica representará um caminho sem volta e irrecuperável para o Brasil, mais grave do que a reserva de mercado para a informática”. Segundo os especialistas, a lei nacional de biossegurança serviu de modelo a outros países da América Latina e permitiu o avanço da biotecnologia. A Embrapa, centro de referência em tecnologia agrícola, é um exemplo. Desenvolveu batata, feijão e mamão para resistir a pragas e a doenças, mas suas pesquisas de campo foram interrompidas pelo imbróglio jurídico provocado pela soja.

Rotulagem – A pendenga se arrasta desde 1998, quando a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, autorizou a Monsanto a plantar a soja Roundup Ready, que possui um gene para resistir ao herbicida Roundup. Há cinco anos o assunto atrai entusiastas
e críticos ferrenhos, na mesma proporção. Entidades de defesa do consumidor, como o Idec, e os ecologistas do Greenpeace, os principais opositores dos transgênicos, conseguiram barrar na Justiça o plantio
de grãos modificados.

O maior entrave nacional hoje é a falta de uma legislação definitiva que regulamente tanto o plantio quanto a comercialização dos transgênicos no País, o que a MP do governo Lula não cumpre. Outro ponto de discórdia é a rotulagem dos alimentos modificados, que deixariam claro ao consumidor o que ele está comprando. Na prática, já existem muitos produtos com ingredientes transgênicos à venda no Brasil. Desde a famosa batatinha Pringles até sopas e alimentos para bebês. Enquanto a pendenga não se resolve, o governo precisa apagar incêndios. Como o que obrigou o presidente Lula a assinar, em março deste ano, uma MP autorizando a colheita e a venda de quatro milhões de toneladas de soja argentina, plantadas pelos agricultores gaúchos na safra passada.
O atraso em definir o rumo dos transgênicos tem impacto imediato nas pesquisas científicas. “Essa demora inviabiliza que a biotecnologia seja desenvolvida no País. Está tudo atrasado. Na CTNBio há o pedido de análise do milho e do algodão geneticamente modificados, tudo parado por causa da soja”, alerta o advogado Antonio Monteiro, especializado em direito ambiental. Pelo visto, ainda deve levar tempo até que o governo resolva enfrentar o lobby de ecologistas e agricultores, cujos interesses são tão incompatíveis quanto água e óleo.