Tal e qual uma majestade, Maria Bethânia recebe de todos à sua volta um tratamento extremamente respeitoso, único, de rainha mesmo. Porteiros, seguranças, assessores e convidados se dirigem a ela com “respeito aristocrático”, como já disse o mano Caetano Veloso. Perto dela, ninguém fala alto, faz muito barulho ou destoa de seu ritmo tranquilo. Todos assistem Bethânia. Na festa de lançamento de seu selo Quitanda – braço da requintada gravadora Biscoito Fino, da qual é contratada –, na segunda-feira 22, no Rio de Janeiro, a cantora surgiu com os brilhos da corte. Vestia uma blusa de paetê acobreado e um casaco branco forrado com estampa de oncinha e
se mostrava em estado de felicidade. Aos 57 anos, Maria Bethânia
está realizando um sonho antigo: criar um selo e, através dele, lançar projetos especiais de tudo o que seja “bom de cantar e útil às pessoas que quiserem ouvir”. O álbum Brasileirinho e o CD da baiana conterrânea Dona Edith do Prato são os primeiros filhotes do Quitanda, criado
em parceria com Kati Almeida Braga. “Eu sempre quis ter um espaço
no qual pudesse lidar com música, teatro, literatura, tudo o que
admiro e me fascina”, explica.

Com o selo, ela pretende injetar novidades no mercado cultural lançando discos diferenciados. “A coisa de que eu mais gosto é do ensaio. Gosto mais do que do show. Quitanda é como um ensaio, a possibilidade de errar, acertar, descobrir, de mexer com vários elementos.” O nome do selo foi inspirado numa frase da falecida arquiteta italiana Lina Bo Bardi, autora do prédio do Museu de Arte de São Paulo, dizendo que todo mundo deve ter a sua quitanda. Bethânia, então, resolveu ter a sua. Não só inaugurou o selo como seguiu o conselho à risca diversificando ofícios ao revelar o gosto pela arte do entalhe em madeira e pedra-sabão.

Brasileirinho chega ao mercado poucos meses depois do CD Cânticos preces súplicas à Senhora dos Jardins do Céu, ambos com forte sotaque religioso. Outro de seus sonhos seria fazer um álbum com Toinho do Caboclo das Matas Virgens, um cantor da sua região que considera sensível para cantar e contar boas histórias. “Santo Amaro da Purificação, cidade onde nasci, é um celeiro bom, uma terra besta, chique, engraçada, uma África com tradição aristocrática e intelectual”, descreve ela. “Fui criada como qualquer menina do interior da Bahia, estudei em colégio de freiras, gostava de bordar. Costurar, não! Eu detestava. Cozinhar, eu adoro. Aprendi vendo minha mãe ensinar para duas irmãs que iam se casar. Teatro, também aprendi da maneira que mais gosto, sem ser em aulas. A turma da Escola de Teatro da Bahia ensaiava num pátio e eles deixavam que as pessoas entrassem. Tinha que aprender esgrima porque ajudava na postura”, rememora.

Quitanda pode revelar uma Maria Bethânia empresária? “Nãããããããããão”, enfatiza. “Minha parte são as coisas bacaninhas.” Ela e Kati dividem os custos, mas não falam sobre números. Nem a tiragem dos primeiros CDs elas sabem. O CD Maricotinha, seu primeiro projeto na Biscoito Fino, já vendeu 120 mil cópias, e o DVD do show homônimo vai pelo mesmo caminho de sucesso. Bethânia, porém, é irredutível. “Não gosto de pensar em vender um milhão ou 100 discos. Sou péssima nisso. Sou boa é de intuir. Sou muito dengosa, carente, toda insegura, como qualquer pessoa que lide com a exposição. Na Biscoito Fino sou acarinhada.” Enfim, prerrogativas de rainha.

 

Viagem conceitual

Desde que se lançou como cantora, em 1964, Maria Bethânia abre sua sensibilidade para interpretar a alma brasileira. Irrepreensível e cada vez mais determinada e rígida nas suas intenções, ao longo de décadas a baiana cunhou vários álbuns imprescindíveis a qualquer boa discoteca. Bethânia internacionaliza a brasilidade de seus discos com a qualidade de intérprete singular, fazendo leituras personalizadas de clássicos, dando voz a novos talentos da composição ou simplesmente recriando com jinga e paixão versões de músicas estrangeiras que permanecem no imaginário popular. Sempre surpreendente, a cantora faz agora uma viagem conceitual pela cultura brasileira, lapidando suas riquezas sonoras no CD Brasileirinho. É um trabalho que busca a essência popular nacional, descoberta numa altivez que só Maria Bethânia é capaz de revelar.

Salve as folhas, faixa de abertura, é quase uma peça erudita concebida pelo arranjo de Marco Antônio Guimarães, do grupo
mineiro Uakti, que empresta a delicadeza de seu conjunto percussivo, com instrumentos feitos de tubos de PVC e acrescido de violões. Completa o clima de nobreza popular o poeta maranhense Ferreira Gullar declamando trecho do poema O descobrimento, do paulistano Mário de Andrade, que reflete sobre as diferenças e semelhanças entre os brasileiros dos vários extremos do País. Nesta canção, ineditamente Bethânia explora os agudos de uma voz de potência normalmente grave. Yayá massemba é um samba de malemolência afro, criado pela elegantíssima percussão de Marcelo Costa, pelo
baixo de Jorge Helder e pelos violão e viola de Jaime Alem, músicos participantes de 11 das 12 faixas do disco. São apenas duas canções como exemplo, mas que resumem uma das melhores interpretações dos vários regionalismos brasileiros.

Apoenan Rodrigues