Há mais de três séculos não se assistia a nada similar no Reino Unido. Vestido com toda pompa e circunstância, o presidente da Câmara dos Comuns, Michael Martin, foi forçado a renunciar na semana passada. "Abandonarei o posto de presidente no dia 21 de junho", anunciou Martin, de forma lacônica. Na sequência, seu porta-voz esclareceu que Martin também abrirá mão do mandato de deputado pela circunscrição nordeste da cidade escocesa de Glasglow. Ex-líder metalúrgico que chegou à Câmara dos Comuns há 30 anos, ele presidia a Casa desde 2000 e se tornou a mais significativa baixa provocada pelo escândalo do uso indevido de verbas por parte de parlamentares de todos os partidos britânicos. Martin não chegou a se beneficiar do esquema, mas tentou abafar o escândalo. Sua renúncia é a primeira de um presidente da Câmara dos Comuns desde 1695, quando sir John Trevor perdeu o cargo por ter recebido dinheiro para aprovar uma lei.

Composta por 646 deputados eleitos pelo voto distrital, a Câmara dos Comuns passou a ser alvo de críticas desde o dia 8, quando o jornal The Daily Telegraph começou a publicar uma série de reportagens sobre abusos cometidos por parlamentares no sistema que lhes permite pagar com dinheiro público diversos gastos pessoais. No Reino Unido – formado por Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales -, cada deputado recebe o equivalente a R$ 205 mil por ano. Ocorre, porém, que eles recebem em média R$ 439 mil em ajudas adicionais de custos, de acordo com os últimos dados disponíveis, de 2007. Antecipando uma determinação judicial que previa para julho a publicação detalhada dos gastos dos parlamentares, o jornal estampou despesas cobradas a partir de 2004, que vão de comida para cachorro a pagamento de hipoteca inexistente (leia quadro abaixo).

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SEM CARGO O presidente da Câmara dos Comuns, Michael Martin, que tentou abafar a crise

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Um dos pontos críticos é o auxílio-moradia, que permite aos deputados que não são de Londres cobrar pela manutenção de uma segunda residência. Há um casal de deputados – Julie Kirkbride e Andrew MacKay – que aproveitou o subsídio para comprar um apartamento em Londres e terminar de pagar as prestações de sua casa na região de origem.

Outro parlamentar, Keith Vaz, recebeu o correspondente a R$ 239 mil para seu apartamento no bairro nobre de Westminster, quando sua casa fica a menos de 20 quilômetros do centro de Londres, ligada por metrô até a porta do Parlamento. Até o primeiro-ministro, Gordon Brown, foi obrigado a admitir que usou verba pública para pagar a seu irmão, Andrew, o equivalente a R$ 21 mil por serviços de limpeza entre 2004 e 2006, quando era deputado.

À medida que os abusos se tornaram públicos, os parlamentares começaram a devolver aos cofres públicos os recursos usados indevidamente. Cabeças também começaram a rolar. A primeira foi a do subsecretário de Estado de Justiça, Shahid Malik, que assumiu ter pedido reembolso muito superior ao gasto com sua segunda casa na época em que ocupava uma cadeira na Câmara dos Comuns. Com a crise política gerada pelo escândalo, o líder da oposição, David Cameron, pediu a antecipação das eleições marcadas para 2010.

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O primeiro-ministro, por sua vez, defendeu que a solução para o problema é reformular a gestão da Câmara dos Comuns e da Câmara dos Lordes, onde têm assento mais de 700 nobres, além de representantes da Igreja Anglicana. "O Parlamento não pode funcionar como um clube de cavalheiros no qual seus integrantes inventam as regras e as controlam", disse Brown na terça-feira 19 em entrevista coletiva.

No dia seguinte, a Câmara dos Lordes, que não havia sido maculada pelo escândalo dos reembolsos indevidos, expulsou dois de seus membros, acusados de receber dinheiro de lobistas. Antes deles, a última vez que um lorde havia sido retirado do cargo ocorreu há mais de 350 anos. Para o cientista político João Paulo Peixoto, da Universidade de Brasília, que fez pós-graduação na conceituada Escola de Economia e Ciência Política de Londres, pelo menos três fatores contribuíram para acentuar o escândalo. "O Parlamento britânico tem uma tradição histórica de austeridade, ao mesmo tempo que a participação política da população e o exercício da cidadania são intensos", afirma Peixoto. "Além disso, o momento lá é de transparência total."

Como ponto comum com o Brasil, o cientista político cita justamente a crise do sistema representativo: "Só que no Brasil o que escandaliza é a magnitude, pois as cifras alcançam milhões." Outra diferença é o impacto das denúncias. No Reino Unido, além das renúncias e da devolução de verbas, o escândalo já colocou em curso uma mudança no sistema de gestão do Parlamento, que passará a ser administrado por um organismo independente. Entre as medidas previstas pela reforma estão o estabelecimento de um teto para as despesas adicionais e a publicação, a cada três meses, dos gastos de cada deputado.



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