O incêndio do Veículo Lançador de Satélite (VLS-1) na base aérea de Alcântara, no dia 22 de agosto, jogou luz sobre um velho fantasma que assombra as autoridades militares do País: a possibilidade de o Brasil ser vítima de sabotagem. “Não temos indicações de que a oposição ao nosso programa espacial tenha tomado formas ilegais. Mas não somos ingênuos para descartar que não tenha havido antes ou não vá haver agora esse tipo de ação”, afirmou o ministro da Defesa, José Viegas, a um grupo de senadores das comissões de Relações Exteriores, Defesa Nacional e Fiscalização e Controle, na quinta-feira 4. Acompanhado do ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, e do brigadeiro Luiz Carlos Bueno, comandante da Aeronáutica, Viegas assegurou que o projeto brasileiro desagrada muito às grandes potências estrangeiras. “Existe oposição internacional e restrições fortíssimas à transferência de tecnologia e não vamos esquecer que o Brasil teve que desenvolver seu projeto sozinho porque enfrentou extrema dificuldade até para comprar peças no Exterior”, afirmou o ministro da Defesa.

Não é de hoje que a suspeita de sabotagem ronda o programa espacial brasileiro. Às 9h25 do dia 2 de dezembro de 1997, o País tentava, pela primeira vez, fazer o seu VLS subir. Como o quarto motor não funcionou, a operação foi abortada 65 segundos após a decolagem. Acionado o dispositivo de destruição automática, o VLS caiu no mar, a 1.920 metros de distância de Alcântara. A investigação formal concluiu que houve uma falha no sistema de ignição, pois não houve corrente suficiente para provocar a explosão que acionaria o motor. Os fornecedores dos componentes do sistema de ignição descartam essa versão. “Se isso ocorreu, é porque alguém sabotou e montou errado o sistema, pois todos os componentes foram entregues dentro do previsto”, disse um dos fabricantes à ISTOÉ. Ele explicou que, antes das peças serem montadas no VLS, outras 498 do mesmo lote foram testadas e aprovadas. O empresário disse que continua fornecendo os mesmos itens ao programa espacial e que depois do incidente de 1997 nenhuma modificação nos componentes foi solicitada. “Isso prova que o problema não estava na fabricação da peça”, conclui. No comando da Aeronáutica, muitos acreditam que o VLS foi sabotado.

O fantasma da sabotagem voltou a assombrar em 1999, quando uma falha ainda não explicada provocou o acionamento do sistema de autodestruição do segundo VLS. A assombração voltou a rondar Alcântara em abril deste ano, quando se planejava o terceiro lançamento do foguete brasileiro. Dessa vez, quem abortou a operação foi o comandante Bueno, que recebeu a informação de que um funcionário havia sabotado um componente do VLS. Bueno interrompeu o processo, reteve os crachás que davam acesso à base e trocou as catracas eletrônicas. “Tudo foi remontado. Tomamos os cuidados possíveis para que nada desse errado”, disse o brigadeiro. No mês passado, os cuidados foram redobrados. Semanas antes do incêndio de 22 de agosto, os estrangeiros em visita a São Luís começaram a ser monitorados e até embarcações que passavam perto de Alcântara tiveram que mudar de rumo, entre elas dois navios franceses de pesquisa. Oficialmente, eles faziam levantamentos sísmicos para a Petrobras. Mesmo assim, aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) sobrevoaram insistentemente as embarcações, que levantaram âncoras dias antes de o VLS se incendiar, embora tivessem autorização da Agência Nacional de Petróleo para permanecer na área até outubro. Também se rastreou um navio oceanográfico americano que navegou pela região no início de agosto e zarpou rumo à Europa no dia 15. A data exata do lançamento do VLS era mantida em sigilo, embora fosse um segredo de polichinelo, pois o satélite americano Ikonos, da Space Imaging, fotografa tudo o que se passa na base.

Apesar dos cuidados, o sonho do VLS virou pesadelo e, até que se apure o que ocorreu, o fantasma da sabotagem continua a assombrar. A tragédia que custou a vida de 21 engenheiros e técnicos já trouxe resultados concretos. No mesmo dia do acidente, o comandante da Aeronáutica convidou um grupo de especialistas russos para auxiliar na investigação. Mais do que ajuda temporária, o convite representa uma aproximação estratégica. Os seis especialistas são uma espécie de dream team do projeto espacial russo e chegam ao País no momento em que os Ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia negociam um novo acordo com a Rússia, nos mesmos moldes do que existe com a Ucrânia. “Esse acordo é fundamental para o desenvolvimento de novas tecnologias de ponta”, diz o ministro Amaral. “O quarto estágio do foguete ucraniano, hoje com três estágios, será desenvolvido no Brasil, em conjunto com o CTA”, anunciou. Ele ainda cogita a contratação de cientistas ucranianos. Se tudo der certo, Alcântara pode se transformar num dos mais concorridos centros espaciais do mundo, tornando realidade os piores pesadelos dos países hoje donos do mercado mundial de bases, foguetes e satélites.

 

Muito além do foguete

Apesar de nascido em plena ditadura, o Programa Espacial Brasileiro não foi planejado com propósitos militares. Ao contrário, sempre houve oficiais criticando o volume de verbas destinado a ele. Assim como o setor nuclear e de telecomunicações, a pesquisa espacial também tem papel estratégico para a economia brasileira. O maior de seus objetivos é garantir ao País o acesso à tecnologia de lançamento de satélites para ter controle sobre os recursos naturais, em especial as reservas de ouro e minérios na Amazônia. A missão maior ainda não foi alcançada, mas o programa já representou ganhos nada desprezíveis para a indústria nacional.

Entre as conquistas tecnológicas, o brigadeiro Hugo Piva, um dos pais do VLS, cita o aço de alta resistência. Fruto de uma cooperação entre o Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e a empresa paulista Eletrometal, ele é usado no suporte do motor de jatos de grande porte. A tecnologia do combustível dos foguetes brasileiros, pesquisada pelo CTA, foi repassada para a Petrobras, que a aplica na borracha sintética e em colas especiais, essenciais nas tubulações das plataformas petrolíferas em alto-mar. O valor agregado dos produtos espaciais é suficiente para justificar a continuidade do programa. Enquanto um quilo de produto agrícola tem valor agregado de R$ 0,30, o mesmo quilo vale R$ 50 mil, no caso dos satélites. Nos EUA, entre os diversos ganhos da pesquisa no espaço estão produtos usados no cotidiano, como o forno de micro-ondas, o velcro e o teflon das panelas antiaderentes.

Hélio Contreiras