O uso de animais em pesquisas científicas sempre causou polêmica. Desde o século passado, quando os experimentos com cobaias ganharam força, pesquisadores e organizações protetoras dos animais vivem em constante pé de guerra. Essa é a briga histórica. Na semana passada, porém, foi a vez de os próprios cientistas se dividirem. Motivo: o mais novo levantamento feito pela Fundação de Pesquisa e Desenvolvimento Alternativos, dos EUA, mostrou que a população mundial de ratos de laboratório está crescendo explosivamente – eles já são atualmente cerca de 100 milhões de ratinhos, o que significa um aumento de 20% nos últimos seis meses. Diante de tamanha proliferação, muitos pesquisadores passaram a se perguntar: não seria melhor utilizar outras espécies como cobaias?

Os números impressionam. Apenas na Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, existem 100 mil camundongos e a explosão se deu depois da divulgação de um estudo pioneiro que traçou o mapa cerebral desses roedores. Segundo a pesquisa, feita por peritos do Instituto Allen de Ciência Cerebral, o sistema nervoso dos ratos aproxima-se extremamente do nosso com 99% de semelhança. “É um índice que permite ter pistas confiáveis do que acontece no cérebro humano”, diz Traci Paulk, responsável pelo estudo. Apesar dessa enorme similaridade, o 1% que falta significa grandes diferenças. Geneticamente, os ratos têm em comum com os humanos apenas 90% dos genes, índice que sobe para 99,4% quando somos cotejados com os nossos ancestrais primatas. Por que não se passa, então, a usar sobretudo os macacos em estudos científicos? Por que continuam sendo poucos os experimentos realizados com eles? A resposta é que o rato é mais generalista, digamos mais clínica geral, enquanto “os macacos são usados com mais freqüência em testes específicos para medicamentos contra a rejeição de órgãos”, diz Marimélia Porcionatto, bióloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Nessa mesma linha de especificidade, os cavalos, por exemplo, são os preferidos dos oncologistas porque a estrutura celular desses animais é muito parecida com a dos humanos. Já os cachorros se prestam ao desenvolvimento de técnicas de cirurgia cardíaca. Assim, os ratinhos acabam sendo mesmo a melhor cobaia: do “clínico geral rato” pode-se partir para o “especialista macaco, cavalo ou cachorro”.

Os ratos que já foram dizimados na Europa por espalharem doenças à população (como a peste bubônica) são unanimidade nos laboratórios. E há ainda outros motivos para isso. Em primeiro lugar está o fato de eles se reproduzirem numa velocidade espantosa: uma fêmea costuma ter até seis ninhadas por ano e sua gestação dura apenas 21 dias. Em segundo, há a vantagem de os filhotes chegarem à idade madura em apenas dois anos e meio e poderem se reproduzir entre si sem gerar aberrações genéticas, permitindo que os genes sejam transferidos praticamente intactos a seus descendentes. “Podemos aplicar nos filhotes os resultados de pesquisas feitas em seus ancestrais”, diz Christopher Newcommer, da Universidade Johns Hopkins. Finalmente, o fácil manuseio de ratinhos também conta. “É muito mais viável manter camundongos nos laboratórios que espécies maiores”, diz a bióloga Clélia Hiruma, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), instituição que conta com 75 mil animais de laboratório. Espécies de médio e grande portes exigem mais cuidados na alimentação, têm elevada expectativa de vida, não conseguem se reproduzir com facilidade em cativeiro e o período de gestação das fêmeas é muito mais longo que o dos camundongos.

O PESO DE CADA UM
 
Gatos
Permitiram avanços na oftalmologia, como a correção do estrabismo, o tratamento do glaucoma e a cirurgia de catarata
Porquinhos-da-Índia
Já renderam 23 prêmios Nobel em diversas áreas da medicina. Entre as suas contribuições estão a descoberta da vitamina C, a do bacilo da tuberculose e a da adrenalina
Ovelha
Primeiro mamífero a ser clonado com sucesso, abriu caminhos para a medicina. Hoje, diversos laboratórios tentam criar medicamentos contra a hemofilia e a fibrose cística a partir do leite de clones
Porco
Células modificadas do animal transplantadas em humanos são a nova promessa para o tratamento de derrames
Furões
Devido à facilidade no controle de seu ciclo menstrual, é o preferido para os estudos relacionados à reprodução humana
Cavalos
Há um século, produziam antídotos contra a difteria que, mais tarde, levaram à produção de uma vacina
Hamster
O estudo da melatonina no cérebro desses animais mostrou como a substância atua no controle dos ciclos circadianos que, nos humanos, definem as horas de sono
Cachorros
Em 1920, o canadense Frederick Bantign ganhou o Nobel por ter descoberto que a diabetes nos cães estava relacionada à falta de insulina no sangue. Foi um grande passo para o tratamento da doença em humanos

A humanidade deve, e muito, às cobaias. Os primeiros registros de sua utilização em pesquisas remontam ao ano de 2250 a.C., quando médicos babilônicos começaram a dissecar animais para aprimorar o diagnóstico de seus pacientes. Essa prática ganhou ainda mais adeptos com as sanções religiosas impostas pelos romanos e bizantinos aos médicos que faziam uso de cadáveres para estudar a anatomia humana. O próprio Hipócrates (460-377 a.C.), considerado o pai da medicina, passou a empregar animais em seus estudos, mas foi um de seus admiradores, o médico grego Claudio Galeno (129-199), quem fundou as bases da medicina científica ao estudar comparativamente macacos e humanos. Os ratos só entraram para valer nos laboratórios no final do século XX quando o americano Paul Minter Brinster criou o primeiro rato transgênico na tentativa de obter a cura de algumas moléstias. De lá para cá, eles passaram a servir de modelo no estudo de males como diabetes, Alzheimer, distrofia muscular, doenças neurológicas degenerativas em geral e diversos tipos de câncer. Também ajudaram no desenvolvimento de medicamentos. O popular Viagra, por exemplo, foi um deles: surgiu a partir de pesquisas do médico americano Solomon Snyder que desenvolveu uma droga para corrigir a falha genética de um de seus camundongos que sofria de disfunção erétil. A descoberta foi patenteada pela Pfizer em 1998.

Na próxima semana, a revista Nature, a bíblia da divulgação científica, publicará uma pesquisa anunciando uma solução para a toxoplasmose, doença transmitida pelos ratos. Através de mutações genéticas nos roedores, especialistas americanos da Universidade de Darmouth conseguiram torná-los resistentes ao microorganismo causador da moléstia. “O animal se contamina, mas não desenvolve a doença”, diz David Bzik, responsável pelo estudo. O seu trabalho abre um atalho para que outras doenças espalhadas por parasitas, como a malária, possam ser curadas. Isso não significa que, numa linha direta, tudo aquilo que funcione em ratos ou em qualquer outra cobaia sirva automaticamente aos humanos. A talidomida, por exemplo, um medicamento hipnótico que é aplicado como sedativo, nunca apresentou problemas em testes feitos em animais. Ao chegar às farmácias, porém, tornou-se uma droga criminosa ao causar má formação de fetos. Desde então, os cientistas passaram a ser obrigados a testar medicamentos em espécies de maior porte antes de aplicá-las em humanos. É por isso que os mais diversos animais, entre eles cachorros, cavalos e macacos, são cada vez mais utilizados pela ciência. Mas o ratinho continua firme na dele: indispensável.

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