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LEMBRANÇA
Quando empregada, Delaíde não recebia nem um salário mínimo

O gabinete da mais nova ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Delaíde Miranda Arantes, teria tudo para ser apenas mais uma suntuosa sala de trabalho do primeiro escalão do Judiciário não fossem duas pequenas fotos em preto e branco que decoram a mesa de trabalho da magistrada. Diminutas quando colocadas naquele amplo cenário de 70 metros quadrados com uma vista privilegiada do Lago Paranoá, as fotografias destoam da pompa que as cerca não pela simples moldura de madeira, mas sim pelo que retratam: duas dessas casinhas simplórias do interior rural brasileiro, pintadas com cal, com duas janelas e uma porta. As duas estão postadas sobre a longa mesa onde Delaíde dá expediente desde o dia 24 de março e dividem espaço com computadores de última geração, estantes repletas de obras de encadernação luxuosa e com móveis modernos que dão um ar sobriamente requintado ao gabinete.

As duas fotografias de cerca de 15 centímetros foram os únicos artigos pessoais que Delaíde levou para o gabinete. “Essas fotos são muito importantes para mim”, diz a ministra. “Foi nessas casas que passei minha infância, uma infância dura que me preparou para enfrentar todos os desafios que me fizeram chegar até aqui. Foi lá que comecei minha história.”

Em um país onde a inércia social sempre foi regra, Delaíde tem razão em orgulhar-se das duas pequenas casas que representam a epopeia que fez essa goiana de 58 anos abandonar a dura realidade do Brasil rural da década de 50 para alcançar um dos maiores postos do Judiciário brasileiro. Delaíde nasceu em uma delas, na pequena cidade de Pontalina, a 120 quilômetros da capital Goiânia. Filha de pequenos agricultores, passou a infância entre a diversão nas jabuticabeiras do sítio e a lida nas pequenas lavouras de feijão, arroz e milho que sustentaram sua família por décadas. “Aos 8 anos eu já ajudava meu pai na roça”, conta Delaíde.

“O trabalho duro me humanizou, sou uma privilegiada”
Delaíde Miranda Arantes, ministra do Tribunal Superior do Trabalho

Aos 16 anos, a ministra enfrentou o dilema que até hoje divide famílias rurais Brasil afora: continuar no campo trabalhando a terra pouco produtiva ou seguir para a cidade em busca de emprego para dar continuidade aos estudos. Optou por ser empregada doméstica a fim de conseguir estadia, comida e algum dinheiro para poder concluir o segundo grau. Por dois anos dividiu os cadernos com o escovão de aço, o ferro de passar roupa e a incômoda situação de saber ser explorada. Mesmo trabalhando as regulamentares oito horas diárias não recebia nem o equivalente ao salário mínimo. “Eu nem ao menos me lembro quanto era, mas só sei que era pouco, muito pouco.”

Foram dois anos assim. Ao terminar o segundo grau, Delaíde seguiu para Goiânia. Estava decidida a tornar-se advogada. Sem dinheiro para fazer um curso preparatório para o vestibular, começou a trabalhar como secretária em uma revendedora de tratores. “Passei quase dez anos trabalhando de dia e estudando à noite, até me formar em direito, aos 27 anos”, conta a magistrada. Já advogada, Delaíde especializou-se na área trabalhista, montou um escritório próprio em Goiânia e por três décadas defendeu empregados que, como ela na adolescência, se sentiam explorados por seus patrões. No ano passado, Delaíde foi indicada pela OAB para ocupar o cargo de ministra do TST e seu nome foi o escolhido entre outros dois indicados pela presidente Dilma Rousseff.

Agora, a ex-empregada doméstica tem o poder de decidir o destino de pelo menos 11 mil ações trabalhistas que estão sob sua alçada no TST. “São 11 mil processos, são 11 mil vidas. Cada processo é uma vida”, diz a ministra, que promete dar atenção especial àquelas mulheres que, como ela um dia, dedicam-se a cuidar da casa de terceiros. “O fato de o FGTS ser opcional para doméstica é resquício da escravidão. É preciso reformar a legislação trabalhista”, diz. Casada com o ex-deputado Aldo Arantes (PCdoB-GO) e mãe de duas filhas, Delaíde orgulha-se do passado difícil. “Fui privilegiada por Deus por ter tido essa experiência, o trabalho me tornou mais humanista.” As duas fotos em preto e branco sobre sua mesa não deixam ninguém esquecer disso.

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