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RENASCENÇA
A cidade de Florença em seu auge, no século XV: apogeu da cultura mas também da luxúria

Não foram tranquilos os dias que transformaram a cidade italiana de Florença em berço do Renascimento. O local que acolheu as artes de Michelangelo e Leonardo Da Vinci e a literatura de Maquiavel também enforcou e queimou um frei dominicano que ousou questionar com intenções reformistas a ética religiosa e política da época – e isso uma geração antes de Martinho Lutero e João Calvino. Seu nome era Girolamo Savonarola (1452-1498), sacerdote que viveu o auge e o declínio de sua carreira por breve período na efervescente cidade banhada pelo rio Arno. A trajetória de Savonarola está contado no livro “Fogo na ­Cidade” (Record), do historiador americano Lauro Martines, especialista no quattrocento italiano. Segundo o autor, tudo o que Savonarola pretendia era resgatar o sentido da fé católica e, para tanto, fez do púlpito sua arma contra o que julgava ser pecaminoso, atirando a religião na cara dos supostos católicos. Pagou caro por isso.

Savonarola usava suas pregações para satanizar desde a corrupção dos governantes até a venda de perdões que envolvia, em última instância, o Vaticano. Natural do principado de Ferrara, onde estudara teologia, ele chegou a Florença em 1490, momento de mudança e posterior crise da família Médici, que governava a cidade desde o início do século XV. O líder da Casa, Lorenzo di Médici, o Magnífico, estava no fim de sua vida e não teve forças ou coragem para enfrentar as duras críticas feitas por Savonarola ao seu estilo extravagante de viver. Temia o confronto pelo destino de sua alma e ao final, em seu leito de morte, pediu ao frei que encomendasse o seu corpo.

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DO CONTRA
Savonarola por Morettoda Brescia: puritano

A ascensão de Savonarola se dá justamente nesse momento de queda dos Médici e o livro pode ser lido também como um retrato dessas transformações. Foi após a morte de Lorenzo e o esvaziamento da política que resultou na invasão da Itália pela França que ele levou em frente suas intenções reformistas. Logo implementou um novo regimento no convento de San Marco, do qual ele era prior, que obrigava os outros frades a viver sem propriedades, luxos ou ostentação. Com o aceno positivo do Vaticano, conseguiu estender a novidade a Fiesole e Pisa, formando a Congregação Toscana. A derrocada de Piero, herdeiro direto dos Médici, levou a um clamor por mudanças éticas na condução dos destinos de Florença, outra frente de ataque de Savonarola. Estavam todos gratos e as missas ficavam cada dia mais lotadas por novos fiéis adoradores do frei. Ele sentiu, então, que a ruptura da rede de privilégios sociais seguia frágil e passou a instigar o povo a pedir que o Grande Conselho criado após a queda dos Médici fosse mais inclusivo. O sacerdote bradava em seus sermões de maneira proposital, para constranger as antigas famílias influentes. Pedia pelo perdão aos Médici, ao mesmo tempo que aconselhava: eram necessários homens recatados para servir ao bem comum que não permitissem o retorno da tirania.

Tais palavras ecoaram da pior maneira possível entre os tradicionais abastados de Florença. À medida que o frei aumentava o nível de interferência política em seus sermões, mais irritados ficavam alguns líderes do conselho. Não foi necessário muito tempo até que queixas chegassem ao papa Alexandre VI. De Roma, primeiro veio uma carta educada convidando o frei a visitar o papa e explicar trechos de seus sermões, nos quais dizia que falava diretamente com Deus. Savonarola não aceitou e a crise caminhou para a dissolução da Congregação Toscana, que ele tanto lutou para construir.

Mas o frei, tachado de demagogo e puritano, não se acovardou e seguiu pregando, mesmo sob escolta. Em 1497 foi excomungado em mais uma tentativa vã de silenciá-lo. Não recuou. Seus opositores perceberam, então, que só a morte o calaria para sempre. No ano seguinte e já vivendo sob constante cuidado contra atentados – até de bomba – o cerco se fechou. Savonarola foi sitiado e preso junto com alguns seguidores. O destino foi a forca e depois a fogueira. Assim foi feito para que não ficasse um único vestígio daquele que ousou desafiar o poder constituído.

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