chamada.jpg

 O ditador português António de Oliveira Salazar (1889 -1970), que governou o seu país por quatro décadas, não tinha o perfil típico dos líderes totalitários. Ele detestava aparições públicas e fazia discursos endereçados mais aos magistrados que ao homem do povo. Tinha uma fraca oratória e uma voz débil que nunca empolgava. Desprezava os slogans políticos, achava vulgar ver o seu rosto estampado em cartazes de rua e, enquanto seus contemporâneos Adolf Hitler, Benito Mussolini e Francisco Franco adotavam a vestimenta militar como demonstração de força, ele preferia a austeridade do fraque negro encimado pela cartola. Ou seja: na guerra midiática do culto à personalidade, Salazar tinha carisma ­zero. Como, então, conseguiu se manter no poder por tanto tempo a ponto de carregar o título de ditador mais longevo da Europa? Essa pergunta atravessa as 816 páginas do livro “Salazar – Biografia Definitiva” (Leya), escrita pelo historiador português radicado na Irlanda Filipe Ribeiro de Meneses – é um trabalho de fôlego que lhe tomou sete anos de pesquisa e, como as melhores obras do gênero, não oferece uma ­resposta, mas diversas hipóteses sobre um dos maiores protagonistas da história recente de Portugal.

img2.jpg
NO GABINETE
Salazar e o retrato de Mussolini: ele discordava
do fascismo no uso da violência

Uma das hipóteses de Meneses é a de que Salazar se manteve no posto de ditador porque não conseguia se imaginar fora dele – sem a sua liderança, iria por terra o delicado equilíbrio de forças que conseguira com tanta perspicácia. Dita dessa forma, pinçada da rigorosa construção do livro, essa tese pode parecer simplória. Não é. Educado num seminário (ele abriu mão do sacerdócio para seguir
a carreira acadêmica) e investido do conservadorismo cristão, o governante se achava “ungido de Deus” – ou pelo menos fez uso disso para afastar toda forma de oposição. De nada valeria esse discurso, contudo, se subjacente a ele não existisse uma real competência para os assuntos públicos e o jogo político. “Salazar não era um oficial brutalizado por uma guerra colonial como o ditador espanhol Francisco Franco ou um veterano das trincheiras transformado em demagogo como Mussolini ou Hitler. Não se impôs pela força das armas, pertencia a um partido político católico”, diz Meneses.

O historiador mostra como o ditador entra em cena com credenciais de especialista em finanças e diplomado pela Universidade de Coimbra – foi ele quem, como ministro, saneou as contas do país. No entanto, não se furta em desnudar as contradições do Estado Novo, o regime político autoritário que o dirigente inaugura e traz a censura e a polícia política. Se não foi um tirano sanguinário, acabou sancionando a violência ao fazer vista grossa aos desmandos da famigerada Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), responsável, entre outros, pelo assassinato do general oposicionista Humberto Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr de Campos. Capítulo bastante esclarecedor é dedicado à Segunda Guerra Mundial, quando ele consegue manter Portugal na neutralidade e impede que a Espanha se alinhe aos países do Eixo, o que colocaria a Península Ibérica no centro do conflito. O autor foi atrás de sua correspondência com o intelectual suíço Gonzague de Reynold, até então ignorada pelos historiadores. Nela fica claro que, para o governante português, a Europa errava ao abdicar de seu papel mundial e entregá-lo a um país despreparado, no caso os EUA.

img1.jpg
MODA SALAZAR
Encontro do ditador com Evita Perón (a primeira, à esq.), em 1947:
no pós-guerra, sua via política foi valorizada pelos conservadores

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Meneses afirma que se sentiu confortável ao examinar a fundo o “paradoxo Salazar” porque foi favorecido pelos novos tempos e pela distância geográfica: “Me parecia chegada a hora de a minha geração desmistificar Salazar, olhando-o como uma figura importante da história portuguesa – e até europeia – sem receios, sem complexos e sem aceitar automaticamente as interpretações recebidas da geração anterior, com todas as suas clivagens ideológicas.” Trata-se, contudo, de uma biografia política. Assim, os romances do ditador, que nunca se casou, ficaram em ­segundo plano. Em passagens breves, o autor cita o relacionamento com a sobrinha Glória Castanheira e com a boêmia Maria Emília Vieira, “parte de um triângulo bizarro que envolvia um conhecido jornalista”. Meneses também lança suspeita sobre a relação de Salazar com a governanta, cinco anos mais velha, que o acompanhou em sua trajetória e o ajudou a configurar um “simulacro de vida doméstica”. Esses eram assuntos proibidos. Ao ser chamado de “monge voluntariamente castrado” pelo político Cunha Leal (e isso em 1930, antes de banir os partidos de oposição), Salazar não hesitou: exigiu que ele fosse exilado em Açores.

img.jpg 

 

Leia a seguir a íntegra da entrevista com o historiador português Filipe Ribeiro de Meneses, autor do livro “Salazar – Biografia Definitiva”.

ISTOÉ – Por que o sr. decidiu escrever uma biografia sobre Salazar?

FILIPE RIBEIRO de MENESES – Por várias razões. Em primeiro lugar, porque, apesar do enorme interesse em torno de Salazar, as biografias existentes são de pouco valor. A mais conhecida de todas, a de Franco Nogueira (o chanceler de Salazar durante os anos 60), é muito pouco rigorosa, dando sempre o benefício da dúvida a Salazar, apresentado como tendo sempre razão. Em segundo lugar, porque me parecia chegada a hora da  minha geração desmistificar Salazar, olhando-o como uma figura importante da história portuguesa – e até européia – sem receios, sem complexos, e sem aceitar automaticamente as interpretações recebidas da geração anterior, com todas as suas clivagens ideológicas. Por fim, porque, enquanto historiador português a lecionar na Irlanda, eu precisava de um projeto grande, capaz de atrair o patrocínio estatal financeiro então disponível neste país: de todos os livros que queria escrever, a biografia de Salazar era o único projeto com a dimensão necessária.

ISTOÉ – Trata-se de uma biografia política. Por que os  aspectos pessoais foram colocados em segundo plano?

MENESES – Os aspectos pessoais não estão completamente ausentes desta obra; parece-me que o livro apresenta alguns dados importantes sobre a personalidade de Salazar, e sobre a sua evolução. Mas cingi-me sobretudo ao “político” por dois motivos. Queria que a biografia coubesse num só volume, quer por razões econômicas, desejadas pela editora, quer pelo meu envolvimento com o biografado. A biografia de Franco Nogueira tem seis volumes; eu quis demonstrar que isso era um exagero, uma forma de “endeusar” Salazar. Mas algo teve de ser sacrificado, dado o fato de Salazar ter estado quarenta anos no poder – e a vida pessoal de Salazar foi uma das vítimas, entre outros assuntos.
O segundo motivo é mais pessoal. Sinto-me capaz de investigar e avaliar as escolhas políticas de Salazar, de dizer quando ele teve razão e quando ele errou. Mas sou demasiado novo para fazer o mesmo em relação à vida pessoal de alguém que viveu até aos 79 anos. Talvez um dia regresse a Salazar, escrevendo então um retrato mais leve, mais pessoal, mais despreocupado com as convenções acadêmicas: mas é necessário ganhar o direito a escrever tal retrato.

ISTOÉ – Poderia falar da pesquisa empreendida? A que tipo de documentos teve acesso?

MENESES – Quis saber o que chegava aos olhos e ouvidos de Salazar, o que ele escrevia e dizia.  Por isso a pesquisa foi conduzida sobretudo em Lisboa, no vastíssimo Arquivo Oliveira Salazar. Este tem sido bastante utilizado por historiadores portugueses nas suas investigações que, porém, focam aspectos parciais do Estado Novo de Salazar; ninguém o tinha ainda usado para uma biografia do ditador. Este conjunto documental é notável, e contem tanto correspondência oficial como particular. Contem também os diários de Salazar (disponíveis na internet). Este nem sempre tem interesse, e a letra é por vezes difícil de decifrar, mas ajudam a esclarecer muitas questões de detalhe: quando ele se encontrou com certas pessoas, sobre o que falaram, etc.
Usei também a correspondência diplomática estrangeira sobre Portugal, de grande importância dado o acesso direto de muitos diplomatas a Salazar e a censura a que a imprensa portuguesa estava sujeita; li ainda a imprensa estrangeira e a portuguesa, sobretudo a mais fiel a Salazar. Quis entender como esta apresentava Salazar ao público português, porque esta imagem pública obrigava-o a certos comportamentos e atitudes.

ISTOÉ-Existe algum documento inédito descoberto durante esse processo ou pouco valorizado até agora?

MENESES – Existem vários volumes dedicados à correspondência de Salazar com as figuras mais importantes do regime, mas estes não estão completos, porque nem sempre as cartas destes correspondentes estão onde deviam estar, à primeira vista, nas pastas do Arquivo Oliveira Salazar. Graças à imprensa da época pude encontrar discursos de Salazar que não foram incluídos na coletânea oficial destes mesmos, por representarem um passo em falso, ou por conterem promessas nunca cumpridas, tendo por isso sido esquecidos. Mas para mim o mais importante foi ter usado algumas correspondências até agora ignoradas por outros historiadores. Destas, a mais importante é a troca de cartas com o Conde Gonzague de Reynold, um intelectual suíço, durante a Segunda Guerra Mundial. As ideias de Salazar sobre o conflito, e o pós-guerra, aparecem aí com uma nitidez surpreendente.

ISTOÉ – Que aspectos da trajetória de Salazar lhe parecem focados sob uma nova luz em seu livro?

MENESES – Acima de tudo as dificuldades sentidas por Salazar em manter-se no poder, o que levou a que essa manutenção se tornasse a sua primeira prioridade, sendo descrita publicamente como uma necessidade nacional. Quem o pressionou? Curiosamente, e com algumas exceções (incluindo Humberto Delgado em 1958) não foi a oposição, sempre fácil de conter. O relacionamento com o exército foi sempre difícil, do princípio ao fim da carreira de Salazar; mas havia mais grupos que lhe causavam, de tempos em tempos, dissabores. Os monárquicos eram um desses grupos; mas mesmo os seguidores mais próximos do ditador o podiam atrapalhar. Uma das secções do livro chama-se “Salazar versus o Estado Novo”. Havia uma corrente, no final dos anos 40 e na década seguinte, que queria promover Salazar à Presidência da República (uma posição meramente simbólica) de forma a entregar a governação do país a uma nova geração. Queriam que o Estado Novo se renovasse à custa do seu fundador. Salazar resistiu até ao fim, mas nunca teve campo livre para governar como exatamente como queria.


ISTOÉ – Qual a principal dificuldade de se escrever sobre Salazar?

MENESES – O fato de nenhum historiador português ter tentado até agora este projeto, apesar do interesse do público, indica que havia o receio de ser o primeiro, de enfrentar as críticas que inevitavelmente se seguiriam, vindas do resto da academia, e, fora desta, de uma direita saudosista e de uma esquerda para quem a luta “antifascista” foi o ponto alto da sua existência. Talvez por estar fora do país não senti essa pressão, e fui muito apoiado por outros historiadores. Embora tenham surgido as críticas esperadas, a resposta do público foi excelente: havia de fato o desejo generalizado de ler um livro desta natureza.
Em termos práticos, a maior dificuldade foi  a maneira de trabalhar de Salazar. Ele era muito cauteloso com o que escrevia e com o que dizia em público, e impunha esta cautela a quem com ele lidava de perto. Assim, existem vários tipos de correspondência com Salazar: uma correspondência oficial, que relata fatos; uma correspondência particular, em que eram expressas opiniões, mas ainda com alguma reserva; e o contato direto, pessoal, em que as pessoas se abriam com Salazar. Para o historiador, torna-se difícil, nessas circunstâncias, recriar o processo intelectual que levou à tomada de uma qualquer decisão.

ISTOÉ – Porque Salazar não pode ser examinado da mesma forma que se estuda figuras como Franco, Hitler e Mussolini?

MENESES – Eu acho que pode – mas quem o fizer rapidamente chegará à conclusão de que ele não faz parte desse lote de ditadores. Isso deve-se a vários factores. Em primeiro lugar, o passado profissional de Salazar, e a forma de chegar ao poder. Salazar era um professor da Universidade de Coimbra, não um oficial brutalizado por uma guerra colonial como Franco, ou um veterano das trincheiras transformado em demagogo, como Mussolini ou Hitler. Não se impôs pela força das armas; pertencia a um partido político católico de reduzida dimensão; a sua vida na torre de marfim de Coimbra era pacata. Foi convidado para Ministro das Finanças por um exército que, tendo assumido o poder, não soube endireitar o orçamento do Estado. A força política inicial de Salazar prende-se à sua política financeira cautelosa e ortodoxa, cortando despesas e aumentando receitas. Por outras palavras, a sua trajetória até ao poder é completamente diferente. E isso teve conseqüências para a sua maneira de governar, marcada pela prudência, a discrição, e a desmobilização política da população em geral.
Foi Salazar um tirano sanguinolento? Claro que não. Nunca encarou os seus inimigos políticos como entes desprezíveis, sem o direito à vida, e não ensinou os portugueses a odiar. Mas mesmo assim foi o principal responsável pelos excessos, e pelos crimes, cometidos pelos seus subordinados. Não podemos ignorar as condições do campo do Tarrafal, em Cabo Verde, ou o assassinato de Humberto Delgado, em Espanha; não podemos ignorar o tratamento de presos pela polícia política, a PIDE, quer em Portugal, quer em África. No livro demonstro que quando Salazar recebia queixas quanto ao tratamento de presos, pedia à PIDE esclarecimentos – nunca pedia a outras entidades que investigassem a polícia política. Estava assim a dar-lhe cobertura política, porque a PIDE era extremamente útil a Salazar. Mas a escala da repressão nada tem a ver com, por exemplo, o que se passou em Espanha.

ISTOÉ – Para o sr. , Salazar e Estado Novo não devem ser totalmente identificados – ele, inclusive, não apreciava o termo salazarismo? Isto é fundamental para se entender o seu pensamento político?

MENESES – Sim, e esta é uma conclusão que para muitos em Portugal é difícil de aceitar, pois julgam que estou a tentar ilibar Salazar. O Estado Novo não se resumia à vontade de Salazar. A família ideológica original de Salazar – o catolicismo político – era relativamente fraca no cômputo da realidade portuguesa dos anos 20. Salazar teve de governar de acordo com o balanço de forças que encontrou em Portugal, um balanço que nunca foi estático, estando em evolução constante. Por isso Salazar impediu a cristalização da ideologia do regime: por isso impediu a criação do “salazarismo”. Existem cartas ao diretor do “Diário da Manhã”, o jornal oficial do regime, em que Salazar proíbe o uso do termo. Porquê? Porque uma vez que esse estivesse definido, Salazar perderia a sua margem de manobra, estando preso a um grupo de idéias e conceitos. Salazar não tinha nem força para se impor completamente ao país, nem as respostas a todas as questões do dia; precisava da ajuda de outros governantes, e conseguiu atrair várias gerações de portugueses a colaborar com ele. As universidades eram o seu centro de recrutamento para o governo, não as organizações políticas tais como a União Nacional, a Mocidade Portuguesa e a Legião; punha competência técnica à frente de “pureza” ideológica.
As conseqüências desta atitude vêem-se na evolução do Estado Novo, que é também constante. Progressivamente mais autoritário, e até “fascista”, nos anos 30, muda de caminho no pós-guerra, adotando planos econômicos de grande dimensão e integrando as novas instituições européias; nos anos 60 o crescimento econômico, apesar das transformações que este vem forçosamente operar na sociedade portuguesa, é a prioridade clara, lado a lado com a preservação das colônias.

ISTOÉ – Estes dois episódios da história portuguesa – a neutralidade na Segunda Guerra Mundial e a demora para se entender o novo cenário colonial – são momentos chaves na biografia política de Salazar?

MENESES – Sem dúvida, e por isso recebem tanta atenção no livro. Para Salazar, a Segunda Guerra Mundial foi uma catástrofe tremenda, o momento em que a Europa abdicou do seu papel mundial, entregando-o a um país que ou não estava intelectualmente pronto para tal tarefa – os Estados Unidos – e a outro, que queria impor uma doutrina dissolvente ao resto do mundo – a União Soviética. Não houve, por isso, a seus olhos, vencedores: todos eram vencidos. Mas dentro desse cenário catastrófico houve ainda muito que fazer: impedir que a Espanha de Franco alinhasse com as potências do Eixo, arrastando fatalmente a Península Ibérica e o império colonial português para o conflito; garantir o comércio português com o resto do mundo; resolver o caso de Timor Português, ocupado primeiro pelos aliados e depois pelos japoneses; tentar prever, e conter, as conseqüências domésticas da aparente vitória militar alemã, até 1942, e, depois, da vitória militar aliada. Foram anos de grande desgaste intelectual e físico para Salazar, mas também de triunfo: Portugal emerge da crise como parte integrante do Ocidente e é um dos países fundadores da NATO em 1949.
A questão colonial é uma questão mais complicada. Não nos podemos esquecer de que em 1961, quando começa a guerra em Angola, o consenso em Portugal sobre a necessidade de preservar o “Ultramar” é quase completo; o debate internacional sobre o futuro do mundo colonial passou ao largo da sociedade portuguesa. Salazar tem de defender as colônias; é o que o país espera dele. A partir dessa conclusão, Salazar trava uma guerra em muitas frentes – militar, diplomática, financeira, econômica – para garantir a sobrevivência das “províncias ultramarinas” portuguesas, agora descritas como necessárias para a sobrevivência do próprio Portugal. Há desaires, claro (sobretudo a queda de Goa em Dezembro de 1961) mas há também vitórias – e Portugal conta com o apoio de potências regionais, como a Rodésia e a África do Sul, e forças importantes por todo o Ocidente; não está de todo isolado.
A política colonial de Salazar, que segue, na prática, o mesmo rumo durante o governo de Marcelo Caetano, seu sucessor, tem conseqüências enormes; ao nível humano, para quem combateu, de um lado e de outro, para quem viu o seu país transformado num campo de batalha e para quem, sob a ilusão de que o domínio português era sólido, emigrou para África durante as décadas de 60 e até de 70. Mas foi também esta política que impediu a evolução do regime para a democracia, como sucedeu em  Espanha após a morte de Franco. Em Portugal foi necessária uma revolução para acabar com o Estado Novo e permitir a reintegração de Portugal numa Europa que há muito abandonara o colonialismo.

ISTOÉ – A posição de Salazar em relação ao holocausto tem explicações razoáveis?

MENESES – Salazar quase nunca falou publicamente sobre o holocausto, nem durante os anos em que este decorreu, nem depois. Ou por vergonha (já que pouco fez para salvar vidas humanas e puniu o diplomata Aristides de Sousa Mendes, que, desobedecendo a ordens de Lisboa, salvou milhares de judeus dos seus perseguidores nazis), ou por cálculo político, Salazar remeteu-se a um silêncio profundo. Viro-me mais para esta segunda hipótese. Sendo a Alemanha um poder incontornável na Europa, não a criticar publicamente, por qualquer motivo, era uma forma de acautelar o futuro. Em 1961 o ministro da Defesa alemão, o arqui-conservador Franz-Josef Strauss, numa carta a Salazar relacionada com a guerra em Angola, agradeceu a boa vontade portuguesa, e de Salazar, para com o seu país, mesmo durante a “época da catástrofe da Alemanha”. Talvez este agradecimento seja um reflexo dessa cautela diplomática quinze anos mais cedo.
Existe um outro factor a ponderar: nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o holocausto foi pouco falado e discutido. A Guerra Fria dominava as atenções da Europa e da América, enquanto o Estado israelense lutava pela sua sobrevivência. Os sobreviventes do holocausto estavam a tentar integrar-se em novos países, ou a tentar recuperar a normalidade perdida. Foi só com o julgamento de Adolf Eichmann que se começou de novo a falar e sobretudo a escrever sobre o holocausto. Nessa altura já a guerra tinha começado em Angola, estando as atenções portuguesas para aí viradas.

ISTOÉ – Na introdução à edição brasileira, o sr. fala da insatisfação de Salazar em relação ao envio de tropas brasileiras ao conflito e à aproximação do Brasil aos EUA. Poderia dizer mais à respeito desse episódio?

MENESES – Como já referi, uma das principais preocupações de Salazar durante a Segunda Guerra Mundial foi manter Espanha fora do conflito. Para tal quis Salazar criar uma grande zona neutra que, respeitada pelos beligerantes, rejeitasse a necessidade de participar no conflito, guardando as suas forças para o pós-guerra. Se esta existisse, Franco poderia mais facilmente resistir à tentação – fortíssima, por vezes – de intervir, quer perante Hitler e Mussolini, quer perante os fascistas espanhóis. Quanto maior e mais poderosa fosse essa zona, melhor para Portugal; queria Salazar que toda a América Latina a integrasse. Por isso viu a intervenção do Brasil na guerra como um revés.
A nível doméstico, boas relações com o Estado Novo brasileiro ajudavam a legitimar o seu congênere português; assim sendo, era importante demonstrar que os dois regimes agiam de forma conjunta. Em 1940 o Brasil aceitou o papel de co-anfitriã durante as Comemorações dos Centenários (da independência portuguesa e da restauração desta, em 1640), um momento importante na vida do regime português, que muito beneficiou com esse gesto brasileiro. Ao entrar na guerra, Getúlio Vargas enfraqueceu a posição de Salazar, demonstrando publicamente que este nem sempre era escutado pelos seus interlocutores internacionais.

ISTOÉ – O sr. detecta um certo humor na figura de Salazar. Poderia falar mais sobre essa faceta do biografado?

MENESES – O humor de Salazar, nem sempre “politicamente correto”, é algo que sobrevive em alguns relatos de quem com ele trabalhou de perto, sobretudo Franco Nogueira, nos seus diários.  Mas por vezes transparece nos escritos de Salazar e em documentos oficiais. Um alvo desta maledicência, por exemplo, era Nicolás Franco, irmão do Generalíssimo e Embaixador de Espanha em Lisboa.  Incapaz de chegar a horas a qualquer encontro, era um péssimo representante do seu país, o que se reflete nos apontamentos impiedosos trocados por Salazar e o Embaixador Teixeira de Sampaio, seu principal colaborador diplomático. Mas o próprio caudilho era por vezes visado por Salazar, que o comparou, perante uma delegação britânica, a um católico sem pressa de chegar ao céu (Franco falava em transformar a Espanha numa monarquia mas nada fazia nesse sentido, de forma a preservar o seu poder pessoal). Este comentário foi muito apreciado pelos seus ouvintes. E a um antigo colaborador nomeado Embaixador em Madrid, Salazar recomendou que nunca se esquecesse da necessidade de bajulação sentida pelo Caudilho.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias