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REVOLTA
Em Sanaa, a capital do Iêmen, populares protestam contra
o governo e exigem a saída do presidente Abdullah Saleh

 O coronel líbio Muamar Kadafi tornou-se o símbolo de uma geração de déspotas que, agarrados ao poder e alheios às necessidades de seus cidadãos, transformaram o Oriente Médio e o norte da África em uma das regiões mais autoritárias e desiguais do planeta. Em quatro décadas de reinado brutal, Kadafi, que se autoproclamou o “rei dos reis”, conseguiu reunir em torno de si todos os estereótipos de um ditador extravagante, sanguinário e opressor. Mais preocupados com as vastas reservas de petróleo e gás natural do país, ao longo das últimas décadas, os líderes ocidentais preferiam ver o ditador líbio apenas como uma espécie de déspota excêntrico. Suas enfermeiras ucranianas, suas roupas coloridas ou mesmo a insistente obsessão em montar tendas luxuosas onde quer que fosse serviram de combustível para conversas animadas no pragmático mundo da diplomacia internacional. Nos últimos anos, Kadafi chegou a estabelecer relações para lá de cordiais com primeiros-ministros ou presidentes defensores da democracia, como o britânico Tony Blair ou mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Na última semana, no entanto, as imagens de corpos humanos destroçados por armas de grosso calibre, os relatos de ataques aéreos contra manifestantes desarmados e o desespero de milhares de estrangeiros em fugir do caos que tomou conta da Líbia fizeram o mundo recordar, sobressaltado, que Kadafi não passa de um ditador sanguinário, considerado um louco psicopata até mesmo por seus pares. Nesses últimos dias, ele não mediu esforços para tentar sobreviver à contaminação da onda libertária que vem tomando conta do norte da África e do Oriente Médio. Estima-se que até sexta-feira seus mercenários e soldados ainda leais ao seu comando tenham matado ao menos duas mil pessoas. Como um vírus que se espalha pelo ar, o desejo de melhor qualidade de vida, de libertar-se de regimes opressivos e cruéis e, pelo menos um pouco mais de democracia está transformando a região de forma absolutamente inédita. Depois da Tunísia e do Egito, restam poucas dúvidas de que a Líbia será o próximo país a sucumbir a essa saudável epidemia. A queda de Kadafi, o ditador mais longevo e cruel da região, será emblemática e reforçará ainda mais uma certeza que parece dominar o mundo árabe: a de que não há antídoto contra os desejos de um povo cansado da opressão e da pobreza.

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COVARDIA
A artilharia pesada deixa um rastro de destruição na Líbia,
onde militares desertores doaram seus uniformes para a população

As consequências dessa contaminação em massa são absolutamente imprevisíveis. Estados Unidos e Europa estão agora debruçados na análise das consequências geopolíticas e econômicas dessas revoltas no mundo árabe. Afinal, o fornecimento de petróleo e gás tem sido garantido ao longo dos anos por relações clientelistas que incentivaram a manutenção de ditaduras. Agora, ninguém sabe como serão as novas relações com o Ocidente, se a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) manterá sua formação e política de cartel ou mesmo se teocracias ao estilo iraniano vão ocupar o vácuo de poder criado com a queda dos ditadores. Na quinta-feira 24, os opositores de Kadafi, por exemplo, tomaram importantes terminais petrolíferos situados a leste da capital Trípoli e o governo anunciou a paralisação de parte da produção, o que levou o valor do barril a tocar a barreira dos US$ 120. Na sexta-feira 25 mais da metade da produção de petróleo e gás líbio já havia sido paralisada. “As primeiras consequências já podem ser sentidas. O preço da energia está subindo, o que terá impacto adicional nos custos de transportes e, consequentemente no preço das commodities”, disse à ISTOÉ o economista tunisiano Saïd Kechida. Outra preocupação é com o êxodo de migrantes desses países para a União Europeia. Estima-se em 500 mil o total de pessoas que poderiam bater à porta dos europeus, num momento em que a recessão e medidas antipopulares alimentam protestos como os vistos em Atenas há poucos dias.

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A única certeza por enquanto é de que a Líbia não será o último país a ser contaminado de forma avassaladora por essa epidemia de liberdade. Argélia e Iêmen caminham para uma situação-limite como a vista no país de Kadafi. No Bahrein – onde a primeira corrida da temporada de Fórmula 1 já foi cancelada –, após a repressão violenta de protestos pacíficos, o rei Hamad bin Isa recuou e tenta negociar com a oposição, mas poucos acreditam que as pressões para sua queda irão arrefecer nos próximos dias. O vírus libertário já começa a mostrar seus primeiros sintomas também no Marrocos, na Mauritânia e acredita-se que ele possa tomar conta até mesmo do Irã. Na tentativa de se vacinar, o governo da Arábia Saudita anunciou um pacote de US$ 35 bilhões em investimentos sociais, liberação de financiamento para a compra da casa própria sem juros e aumento de 15% a todos os funcionários públicos. “Os árabes perceberam que podiam sair às ruas. A revolta da Tunísia mostrou que era possível derrubar o regime e o Egito confirmou essa tese. A queda de Kadafi é questão de dias e será emblemática para que outros sigam esse caminho”, diz à ISTOÉ o cientista político iraniano Meir Javedanfar.

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FORA
Revoltados com o ataque a civis,
líbios exigem a saída de Muamar Kadafi

 Mais do que a língua, a religião ou o fato de estarem flutuando sobre as maiores reservas de petróleo do mundo, o que vem unindo os povos árabes neste início de 2011 é a busca por melhores condições de vida. Democracia nunca foi um valor exatamente prezado nessa região do mundo e na história recente não há o mais remoto registro de governos pautados pela liberdade de expressão, seja ela de ordem pessoal, seja de ordem política. O catalisador das revoltas foi muito mais a dissonância entre uma situação econômica decadente e a ostentação exacerbada de pequenas elites políticas ligadas aos ditadores. Soma-se a isso a corrupção endêmica que assola esses países aliada a uma repressão feroz e descomensurada a qualquer tipo de oposição. Confrontados com a escassez de trabalho em seus próprios países e a constante elevação dos preços dos alimentos, os árabes simplesmente foram às ruas pedir uma vida melhor. Tudo começou no dia 17 de dezembro, quando o vendedor de rua tunisiano Mohamed Bouazizi ateou fogo em si mesmo depois que a polícia confiscou as frutas e vegetais que vendia nas ruas de Túnis. A autoimolação de Bouazizi não teve, ao menos diretamente, nenhum estofo ideológico. Foi apenas um grito desesperado contra as dificuldades de se ter uma vida digna.

Bouazizi tornou-se um mártir e símbolo do sofrimento dos milhões de dsempregados tunisianos. Rapidamente a revolta ganhou corpo, facilitada pelas novas tecnologias, reverberando pelas emissoras de tevê e angariando cada vez mais apoio entre outros grupos, como sindicatos e intelectuais. Da Tunísia, os gritos de liberdade se alastram com uma rapidez impressionante pelos outros países da região. Hoje, são famílias inteiras, com crianças a tiracolo, empunhando bandeiras e gritando slogans por melhores condições de trabalho e direitos sociais básicos. Foi assim no Egito e está sendo assim na Líbia. Movimento semelhante no último século só foi visto nas ex-repúblicas soviéticas na década de 1990. “As sociedades árabes estavam a ponto de explodir há anos. Que a faísca tenha saltado na Tunísia e o fogo tenha se espalhado pelo Egito foi uma coisa do acaso”, afirma Paul Salem, diretor do Centro Carnegie para o Oriente Médio, com sede em Beirute.

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APOIO
Contrários ao ataque a civis, militares se
unem à população contra Kadafi

As dificuldades econômicas, as injustiças sociais e a concentração de riqueza não são os únicos fatores para justificar um movimento tão sincronizado no mundo árabe. Ao contrário de outras regiões do mundo controladas por déspotas e vivendo na iniquidade extrema, o norte da África e o Oriente Médio atingiram um grau de desenvolvimento relativo após o início maciço da exploração do petróleo, a partir da segunda metade do século XX. Os bilhões de dólares que permitiram que Kadafi, por exemplo, tenha participação acionária em empresas como a Fiat e o jornal inglês “Financial Times” também foram usados para construir uma infra-estrutura aceitável, produzir uma classe média intelectualizada e uma pequena burguesia nascida do comércio e dos serviços com as potências ocidentais que dependem diretamente das reservas naturais desses países. Assim, por mais injusta que seja a distribuição de renda, não há miséria generalizada, como em algumas regiões da África Sub-saariana, onde ditadores sanguinários como Robert Mugabe, no Zimbábue, continuam a governar seus países como se esses fossem suas propriedades particulares. Ainda é incerto se o movimento pode se espalhar para outras regiões do mundo com regimes semelhantes, como a China, a Coreia do Norte ou Cuba. Mas o certo é que os governantes desses países estão atentos a qualquer indício de revolta.

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PARTE 2


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