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A menina nasce com um dom: o samba no pé. Desde pequena, está nas rodas de músicos, nos ensaios da escola, sonhando brilhar na apoteose. De preferência, no cargo mais alto da hierarquia, de rainha da bateria. Quando esse dia chega, já mulher, descobre que a tarefa é árdua. É preciso suar o top na academia diariamente, comer pouco, providenciar roupas incríveis para as apresentações e, quase sempre, bancar as próprias fantasias, pedaços minúsculos de roupa que variam de R$ 2 mil a R$ 15 mil. Tudo isso equilibrada em saltos altíssimos e toda sorrisos. “Apesar de não ter salário nem carteira assinada, é um trabalho duro. Por isso o considero uma profissão”, resume Priscila Bonifácio, 29 anos, rainha da bateria da Unidos da Vila Maria, de São Paulo. “Uma vez no cargo, a dedicação é exclusiva”, diz ela, que deixou um emprego de gerente de hotel em 2010, quando assumiu o posto. Rafaela Bastos, 29 anos, é formada em geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e bate cartão numa firma de engenharia todos os dias. Quando veste sua fantasia, vira uma legítima mulata da Mangueira. “Minha profissão é a geografia, mas quando represento minha escola sou ultraprofissional”, afirma.

Como a carioca Rafaela e a paulista Priscila, centenas de brasileiras encarnam todos os anos, durante o Carnaval, um dos principais personagens da cultura brasileira – a mulata. E, mesmo sem remuneração, elas estão cada vez mais profissionais. “É trabalho para um ano inteiro, a escola é uma empresa que nunca para”, explica Priscila. Os ganhos acontecem de forma esporádica, nos shows que as escolas promovem, mas, definitivamente, não é essa a razão pela qual essas mulheres se preparam com afinco para seus minutos de glória no Carnaval. “Nesse dia, elas são deusas”, acredita Walmor Pamplona, diretor do documentário “Mulata: um Tufão nos Quadris”, com estreia prevista para a véspera do Carnaval. “Isso mexe muito com a cabeça delas.”

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MALABARISTA
Pós-graduanda em políticas públicas,a rainha de bateria da Unidos
da Vila Maria Priscila Bonifácio deixouum ótimo emprego para brilhar na avenida

Para muitas, de origem humilde, brilhar na avenida é também uma chance de fazer algum dinheiro e um certo sucesso. A antropóloga Sônia Giacomini, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), chegou a fazer uma tese de mestrado sobre as mulatas no início dos anos 90. “A grande maioria, depois de falar em sonho de estrelato e riqueza, mencionou querer escapar das ocupações geralmente destinadas a mulheres não brancas na sociedade brasileira, mal remuneradas e desprestigiadas”, recorda.

Nilce Fran, 45 anos, é um exemplo de quem levou a “profissão mulata” a sério. Rainha da bateria da Portela em 1996 e 1997, hoje ela é a coordenadora da ala das passistas da escola e montou, com o irmão, o Projeto Primeiro Passo, uma oficina de passistas voltada para crianças e jovens da comunidade de Madureira. Além disso, dá aulas particulares. Mais nova, se apresentava em shows no Brasil e no Exterior. “Hoje a coisa está bem mais profissional, eu vivi uma época de muito preconceito com as mulatas”, afirma. “Antigamente, nos concursos, era só ter um corpo bonito, botar um biquíni e desfilar. Hoje é preciso saber outras modalidades de dança e, de preferência, falar outras línguas.” Nilce se refere a um tempo em que as mulatas eram tidas como patrimônio nacional, em especial por causa do trabalho feito por Oswaldo Sargentelli (1924-2002), que se autodefinia um mulatólogo. O empresário revelava mulatas e as levava para turnês mundo afora. Hoje, a glória é estar no programa “Caldeirão do Huck”, da Rede Globo, e ser eleita a Musa do Carnaval.

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“Minha profissão é a geografia, mas quando
represento minha escola sou ultraprofissional”

Rafaela Bastos, da Mangueira

Mas nem tudo é brilho na vida dessas belas mulheres. Nilce reclama da dificuldade de achar um namorado. Rafaela concorda. “Nós sabemos que é tudo uma fantasia e que encarnamos um personagem, mas vá explicar isso para um homem.” Priscila cita a incompreensão dos empregadores com a profissão paralela. Muitas ainda se queixam de ser confundidas com “mulheres de vida fácil”. É bem o contrário. Quase todas são de classe baixa, têm atividades paralelas, cuidam sozinha dos filhos e são solitárias. “É um grande paradoxo. Ao mesmo tempo que são desejadas pelos homens, não conseguem achar parceiros que lidem bem com a nudez e a vida no samba”, conclui Pamplona. Durante o Carnaval, ainda têm que enfrentar a concorrência com as celebridades, que conseguem chegar ao posto de rainha da bateria sem ter galgado todos os degraus da hierarquia do samba. Com medo de que o brilho da avenida seja fugaz, muitas se garantem de outras formas. “Minha prioridade sempre foi estudar”, afirma Priscila, formada em pedagogia, cursando pós-graduação em políticas públicas e mantendo os pés bem colados ao chão, mesmo no alto de seu salto 15. Afinal, a realeza não dura para sempre.

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