A fé de guerrilheiro e amor de revolução levou o padre Pedro a despedir-se da pequena Balserany, cidade na região espanhola da Catalunha, para dedicar sua vida aos pobres do outro lado do Atlântico. Era preciso olhar o mapa com lupa para localizar São Félix do Araguaia, em Mato Grosso. Em 1968, o País vivia a ditadura militar. Ali, no coração do Brasil, habitado por índios e retirantes nordestinos, a miséria e a violência contra as pessoas e a natureza agrediam a alma daquele missionário. De cara encontrou na porta de casa caixas de sapatos com os corpos de quatro “anjinhos”. Pedro desabafou com outro sacerdote: “Ou vamos embora daqui agora mesmo, ou nos suicidamos, ou encontramos uma solução para isto tudo.” Passados 35 anos, o bispo da Prelazia (diocese com poucos recursos) de São Félix do Araguaia, Pedro Maria Casaldáliga Plá, teólogo, filósofo e poeta, pode não ter resolvido os problemas da região, mas foi o grande responsável pela conscientização e melhoria das condições de vida de seu povo.

Completou 75 anos em 16 de fevereiro e no dia seguinte já enviava a carta de renúncia ao papa João Paulo II, como prevê o Direito Canônico. O sucessor deverá ser anunciado em dois meses. “Comandar uma diocese aos 75 anos exige muita versatilidade. É preciso viajar, participar de reuniões, informar-se sobre política, economia, cultura. Só mesmo sendo o Roberto Marinho para continuar”, brinca, em entrevista a ISTOÉ, na sexta-feira 20, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Em 2000, já havia sido homenageado pela Universidade de Campinas. Mas desta vez a cerimônia teve gosto de despedida. Foi especial, já que parte do conselho universitário da UFMT e o próprio reitor, Paulo Speller, se deslocaram até São Félix de ônibus, numa penosa viagem de 30 horas e 1.200 quilômetros, pelas esburacadas estradas que ligam Cuiabá ao nordeste do Estado. “É o primeiro título de Doutor Honoris Causa que a universidade confere em 33 anos de existência. Tendo dom Pedro como parâmetro, não vai ser fácil outorgar outros títulos”, afirmou Speller. A grande incógnita é se ele vai embora após a chegada de seu sucessor: “Se o novo bispo for de outra linha, me retiro para não criar tensões”, diz.

No auge da ditadura, empresas e políticos conseguiam comprar terras para criação de gado através de benefícios concedidos pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e expulsavam índios e posseiros. O franzino bispo transformou-se num gigante ao enfrentar seus inimigos, que o ameaçaram de morte e tentaram assassiná-lo várias vezes. Numa delas, em 1976, morreu o amigo jesuíta João Bosco Penido Burnier, quando ambos foram interceder em favor de duas mulheres que estavam sendo torturadas numa delegacia local, com agulhas sob as unhas. O soldado Ezy Ramalho mirou o revólver 38 e atirou na cabeça de João Bosco. O padre era alto e estava bem arrumado. Diante de Pedro, vestido de forma simples, com seus chinelos, João Bosco parecia o famoso “bispo estrangeiro comunista”. “Às vezes, tenho a sensação de que estou vivendo de gorjeta porque escapei da morte muitas vezes e, talvez, porque João Bosco tenha morrido em meu lugar”, contou ao jornalista catalão Francesc Escribano, autor do livro Descalço sob a terra vermelha.

Tubarões – Ordenado padre aos 24 anos em Barcelona, em 1952, foi sagrado bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia no dia 23 de outubro de 1971, nas margens do rio Araguaia. Um ano antes, Pedro fez sua primeira denúncia, ao redigir o relatório “Escravidão e feudalismo no norte do Mato Grosso”. Depois, divulgou as injustiças citando números e os nomes aos “tubarões” (como eram chamados os latifundiários), através do documento “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Chegou a excomungar duas fazendas da região, onde os peões tinham suas orelhas cortadas antes de serem mortos. Um dos principais expoentes da Teologia da Libertação, ele foi alvo de cinco processos de expulsão do Brasil. Mas o papa Paulo VI intercedeu a seu favor. Na década de 80, levou um puxão de orelhas do papa João Paulo II, depois de peregrinar pela Nicarágua sandinista, El Salvador e Cuba. Viveu na pele os dramas do povo: contraiu uma hepatite e oito malárias.

Hoje, dom Pedro é uma figura amada pela maioria dos 120 mil habitantes espalhados por 16 municípios: a Prelazia de São Félix do Araguaia abraça um imenso território de 150 mil quilômetros quadrados. Os críticos de hoje o acusam de ser contra o progresso, por criticar projetos como construção de hidrovias e estradas que, segundo ele, teriam impactos negativos para o meio ambiente e para a já precária situação dos índios. Polêmicas à parte, o fato é que esse povoado selvagem, que tinha apenas 600 moradores em 1968, hoje é uma cidade com 12 mil habitantes que conta até com um curso de ciências contábeis, da UFMT. Não fosse o esforço da Prelazia, o prefeito de São Félix, Uslei Gomes (PMDB), 48 anos, filho de agricultores, não teria se formado em administração de empresas. Outro fruto da Prelazia é a filha de lavradores Maria de Lourdes Souza, 38 anos, hoje secretária municipal de Educação. “Sou o resultado do trabalho de conscientização. Aprendemos a não nos subestimar e a enfrentar nossos agressores”, conta Lourdes. A diretora de uma escola local Eva Mendes de Souza, 53 anos, estava predestinada a seguir os passos dos pais, lavradores analfabetos. Mas teve a sorte de se mudar para a região aos 18 anos. “Dom Pedro optou pelo nosso lado”, diz Eva, orgulhosa de ver que de seus cinco filhos, três estudam ciências contábeis e um, pedagogia. Aurenice Aguiar, 53 anos, veste a camisa da Prelazia literalmente. Ela agradece a Deus pelo fato de nenhum pistoleiro ter conseguido acabar com a vida de dom Pedro: “Ele é um pai para o nosso povo.” As marcas de Pedro estão impregnadas na alma de várias gerações e nas ruas da cidade. Uma frase escrita num muro de São Félix resume o sentido de sua missão: “Fazer do povo submisso um povo impaciente. Fundir os muitos córregos numa torrente.”

O bispo de havaianas

Da cabeça aos pés dom Pedro Casaldáliga é 100% coerência e paixão. Na cabeça branca, suas idéias fervilham, muitas através da poesia, mas sempre contundentes e a serviço dos mais fracos. Sua fama é de radical, mas o que mais chama a atenção na conversa de duas horas, na manhã da sexta-feira 20, é seu senso de humor. Conta que um jornal local publicou recentemente um artigo contra ele intitulado “O fim do Coronel de Batina.” Ele ri: “Espero que seja só a visão do autor, até porque eu uso pouco a batina”. “O bispo de havaianas” seria mais apropriado. Nos seus pés, lá estão elas. Adotadas há anos, bem antes de conquistarem o mundo fashion, as do bispo de São Félix são pretas e velhas. No rosto, destacam-se os aparelhos auditivos, que ele apelida de “brincos”. O sotaque deste catalão continua forte (diz “bamos” em vez de “vamos”), apesar dos 35 anos de Brasil. As mãos estão trêmulas. No lugar do tradicional anel de bispo, com a ametista (símbolo da fidelidade à Igreja), uma aliança que ganhou dos índios tapirapés, de tucum (um tipo de coco). Aos 75 anos, sofre de mal de Parkinson, pressão alta e labirintite. No computador, num quartinho nos fundos da casa, ele acessa a internet, se atualiza e responde aos cerca de 50 e-mails que recebe por dia. Em São Félix do Araguaia, todos sabem que aquela casinha rosa vive com as portas abertas. E é assim que ele demonstra sentir-se com relação ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva. “A esperança continua (risos). Temos tido praticamente governos ditatoriais ou governos populistas. Talvez pela primeira vez temos um governo popular”, afirma. Logo após a eleição, dom Pedro enviou um recado ao presidente: “Salve-nos da Alca. Tal como os EUA nos propõem, é uma anexação. Primeiro vamos nos integrar à América Latina.”

Apesar de preocupado com os altos juros, revela que tem boa impressão do ministro Antônio Palocci: “Eu não o conheço, mas acho que ele tem uma vantagem: não se exibe como um doutor definitivo.” Sobre Lula: “Confio nele, é honesto, realista, prático e muito inteligente. Espero que ele não perca a cabeça nunca, pelo amor de Deus. Que não se deixe embriagar pelo poder. Lula não pode falhar.” Deposita fé no Programa Fome Zero, como uma “bandeira provocativa”. “Colocar o problema da fome em primeiro plano é fundamental. Mas é claro que não se pode resumir a dar comida porque senão vira paternalismo.” Dom Pedro apóia a reforma da Previdência e reclama dos setores privilegiados: “Estão confundindo direitos com privilégios. Essa batalha que Lula está enfrentando é necessária.” Mas avisa: “A reforma agrária é urgente.” Talvez o presidente não saiba, mas o bispo do coração do Brasil ainda não foi naturalizado brasileiro. “Eu estava esperando que Lula chegasse à Presidência. Qualquer dia vou dizer a ele: quero a sua assinatura…”, brincou. O recado está dado.

(Florência Costa)