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A carta anunciando o afastamento oficial de Fidel Castro do comando de Cuba veio a público na terça-feira 19, mas estava sendo rascunhada há tempos. Em março de 2003, falando a seus companheiros na Assembléia Nacional (Parlamento cubano), Fidel prometeu continuar ao lado deles o tempo que fosse necessário, “nem um minuto a mais, nem um minuto a menos”. Por outro lado, partilhou a intenção de se manter ativo e influente enquanto a saúde permitisse. “Agora compreendo que meu destino não era vir ao mundo para descansar no final da vida.” Onze anos antes, em fevereiro de 1992, durante um jantar no Palácio do Governo, em Havana, mostrou que estava atento à sua saúde e aos freqüentes comentários a respeito dela na imprensa internacional. “Não adianta procurar sinais de debilidade”, disse a esta repórter, mostrando as mãos longas, com unhas compridas e bem tratadas. “Estou firme.”

 

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SEMPRE ALERTA Mesmo depois de ter dito adeus aos cargos, Fidel apontou suas baterias contra os Estados Unidos

Na época, a imagem do imponente guerrilheiro que afugentara o ditador Fulgêncio Batista tinha cedido espaço para a do governante de farda, que se perpetuara no poder e colocara a pequena ilha do Caribe em descompasso com o mundo desenvolvido. O colapso da União Soviética, no ano anterior, havia implicado a perda de US$ 6 bilhões em subsídios anuais. O regime implantado em 1959 parecia estar se extinguindo. Cuba vivia o chamado Período Especial, marcado por uma profunda crise e severo racionamento de alimentos e combustíveis, do qual começou a sair quando promoveu uma pequena abertura em suas relações econômicas com o resto do mundo.

Depois, graças principalmente ao petróleo do presidente venezuelano Hugo Chávez, Fidel não apenas sobreviveu como conseguiu criar condições para controlar a própria sucessão. Mesmo com a saúde debilitada, recuperando-se de uma enfermidade abdominal não esclarecida, ele só renunciou à Presidência um ano e meio depois de transferir o cargo “provisoriamente” a seu irmão, o ministro da Defesa Raúl Castro. “Não me despeço de vocês. Desejo apenas combater como um soldado das idéias. Seguirei escrevendo sob o título ‘Reflexões do companheiro Fidel’ ”, avisou, fazendo referência à série de artigos que começou a publicar no ano passado no Granma, o jornal oficial do país. “Será mais uma arma do arsenal com a qual se poderá contar.”

Na prática, a carta de Fidel só tornou oficial um processo que já se desenrolava nos bastidores do regime: ele se retira de cena, mas, na medida de suas forças, continua no jogo. “O poder de Fidel não vem de sua posição, vem do fato de ele ser Fidel”, costuma repetir um dos mais respeitados dissidentes do país, o engenheiro Oswaldo Payá. À frente do grupo pró-democracia Projeto Varella, na semana passada Payá voltou a pedir a convocação de eleições livres e a libertação dos presos políticos, para que “o povo cubano possa começar uma nova etapa de sua vida”.

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O desafio do sucessor de Fidel é colocar Cuba em compasso com o mundo desenvolvido, conciliando abertura política e econômica

No que diz respeito à sucessão, não há mudanças significativas à vista. O cenário que se desenha na ilha é a eleição de Raúl Castro neste domingo 24 pelos 614 integrantes da Assembléia Nacional eleitos em janeiro. Conhecido como El Chino, por causa dos olhos puxados, Raúl vem dando mostras de seu compromisso com as reformas, embora na última reunião do Parlamento, em dezembro passado, tenha declarado que não dava para avançar “tão rápido” quanto desejam alguns E S P E C I A L Durante 49 anos, a trajetória de Cuba esteve vinculada à de Fidel SUPERSTOCK/GRUPO KEYSTONE setores. De imediato, a maior expectativa é com relação a quem será o segundo na hierarquia e como se dará a divisão do poder. Os mais cotados são o vice-presidente do Conselho de Estado, Carlos Lage, um pediatra de 56 anos que arquitetou as reformas econômicas dos anos 90; o presidente da Assembléia Nacional, Ricardo Alarcón, 71 anos; e o chanceler Felipe Pérez Roque, 42 anos, uma liderança em ascensão.

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RIUNFO Fidel, Che Guevara (no banco de passageiro) e companheiros desfilam por Havana depois da fuga do ditador Fulgêncio Batista

Principal artífice da aproximação da Igreja Católica com o regime de Fidel, que culminou com a visita do papa João Paulo II a Cuba em 1998, o religioso brasileiro Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, está convencido de que haverá um aprimoramento do socialismo. “Nem os bispos católicos de Cuba torcem mais pelo capitalismo”, afirma ele, cujo livro Fidel e a religião ultrapassou a marca de 1,3 milhão de exemplares vendidos na ilha. “Os cubanos olham em volta e não desejam que o futuro de seu país seja o presente de Honduras ou da Guatemala.” Durante sua última viagem a Cuba, às vésperas do anúncio de Fidel, frei Betto conversou longamente com Raúl, que estava entusiasmado com os acordos firmados com o Brasil em janeiro e, em particular, com a perspectiva de a Petrobras levar tecnologia a Cuba para explorar petróleo no Golfo do México.

Raúl, que já vinha incentivando um processo interno de críticas “construtivas à revolução”, tem pela frente a tarefa de promover uma efetiva abertura econômica do país. Trata- se de uma missão complicada. Talvez por isso mesmo ele tenha passado a repetir o slogan divulgado no país durante o Período Especial – “Sí, se puede” –, por coincidência um dos lemas da campanha do democrata americano Barack Obama. De qualquer forma, a idéia de conciliar manutenção do cerceamento político com reforma econômica não parece promissora, em especial pela expectativa por mudanças que se prolifera no país. Um reflexo desse sentimento foi o recente episódio, gravado em vídeo, no qual um estudante da Universidade de Ciências Informáticas de Havana pergunta a Ricardo Alarcón, que é o principal consultor de Fidel para relações com os Estados Unidos, “por que os cubanos precisam trabalhar três dias para comprar uma escova de dentes”. Não demorou muito para o estudante, Aliécer Ávila, aparecer em público e dizer que fora mal interpretado. O fato é que, naquela altura, o vídeo fazia sucesso no mercado negro da ilha.

Com 11,4 milhões de habitantes e pouco mais de 110 mil quilômetros quadrados, Cuba deve adotar um modelo econômico similar ao chinês, expandindo as parcerias já existentes com empresas privadas e públicas de países capitalistas. Ao mesmo tempo, tentará encontrar uma forma de manter as conquistas sociais adquiridas no decorrer dos 49 anos em que Fidel se manteve no poder, principalmente nas áreas de educação e saúde. Se depender do presidente americano George W. Bush, continuará a enfrentar o embargo econômico imposto em 1962, em represália às expropriações de propriedades de americanos na ilha. “Estou falando de eleições livres e justas, não dessas eleições manipuladas que os irmãos Castro tentam impor como uma democracia verdadeira”, disse Bush em Ruanda, na África.

Nos Estados Unidos, porém, um grupo de mais de 100 congressistas já despachou para a secretária de Estado, Condoleezza Rice, um documento requerendo “revisão completa” da política. O tema também deve permear a campanha presidencial americana. O candidato republicano, John Mc- Cain, é a favor do embargo até a realização de eleições livres e a libertação de todos os prisioneiros políticos. Hillary Clinton e Barack Obama, que ainda disputam a vaga democrata, sinalizaram no passado disposição em amenizar o embargo, mas agora se mostram mais cuidadosos. Por trás da cautela estão os votos da comunidade cubano-americana da Flórida, estimada em 500 mil pessoas, fundamental para definir quem será o concorrente democrata de McCain. “Um a um, os candidatos se sentiram obrigados a exigir que Cuba fizesse mudanças imediatas, para não correrem o risco de perder o único voto que fosse”, escreveu Fidel no Granma. “Mudança, mudança, mudança!, gritaram em uníssono. Eu concordo, mas mudança também da parte dos EUA”.

Aos 81 anos, Fidel escolheu a dedo o momento para sua retirada de cena, embora compelido pela fragilidade física, como ficou evidente em uma de suas mais recentes imagens públicas, durante visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Quase meio século se passou desde que uma sucessão de ataques desfechados pela guerrilha que comandava provocou a fuga do ditador Fulgêncio Batista e dos latifundiários que exploravam as plantações de açúcar da ilha. “Fidel é o único mito vivo da história da humanidade”, disse Lula em Vitória (ES), ao ser informado sobre a renúncia. “Acho que ele construiu isso à custa de muita competência, muito caráter, muita força de vontade e também de muitas divergências, ou seja, muita polêmica.” Entre os pontos mais controversos está o tratamento dado aos inimigos do regime: prisão e, em muitos casos, fuzilamento. Seu adeus representa o primeiro passo no distanciamento necessário para responder a uma de suas frases mais célebres: “Podem condenar-me, não importa, a história me absolverá.” Por enquanto, Fidel desperta paixões com a mesma intensidade que ódios. Da primeira vez que proferiu a frase, em sua defesa pela tentativa de ataque ao quartel de Moncada em 1953, acabou condenado a 15 anos de prisão.

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EM FAMÍLIA Raúl (à dir.) sucederá ao irmão

 

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CICLO HISTÓRICO

Durante 49 anos, a trajetória de Cuba esteve vinculada à de Fidel

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1926

Fidel Alejandro Castro Ruz nasce em 13 de agosto em Birán, filho de um fazendeiro bem-sucedido de origem espanhola. Estuda em um colégio jesuíta

 

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1953

Fracassa a tentativa de tomada do quartel de Moncada, rebelião contra a ditadura de Fulgêncio Batista, liderada por Fidel. Ele é condenado a 15 anos de prisão

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1955

Depois de escrever sua própria defesa, A história me absolverá, Fidel é anistiado e se exila no México. Lá, organiza um movimento de resistência a Batista

1956

Fidel e 81 guerrilheiros desembarcam em Cuba do iate Granma, mas são surpreendidos pelo Exército. Os 12 sobreviventes montam uma guerrilha em Sierra Maestra

1959

Batista foge para Miami, Fidel entra em Havana. O novo governo cria tribunais para julgar contrarevolucionários e começa as reformas urbana e agrária

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1962

Os EUA impõem um embargo econômico a Cuba. A instalação de mísseis soviéticos no país leva o presidente John Kennedy a decretar um bloqueio naval da ilha

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1965

Castro funda o novo Partido Comunista de Cuba e se torna seu primeirosecretário. Che Guevara parte para liderar revoluções no Congo e depois na Bolívia

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1968

Cuba se alinha decisivamente à URSS na disputa ideológica contra a China. Sete anos depois, envia tropas regulares para ajudar o governo marxista de Angola

1980

Cerca de 125 mil cubanos “descontentes” saem do país em direção aos EUA

1991

Com o fim da União Soviética, Cuba fica sem subsídios econômicos

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1998

O papa João Paulo II visita Cuba. Fidel transforma em escândalo internacional a saga de Elián González, o sobrevivente de um naufrágio resgatado por parentes na Flórida

2003

Numa ofensiva do regime cubano contra dissidentes, 75 intelectuais e escritores pró-democracia são presos e condenados a longas penas de prisão

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2008

O papa João Paulo II visita Cuba. Fidel transforma em escândalo internacional a saga de Elián González, o sobrevivente de um naufrágio resgatado por parentes na Flórida