Alexandre Santos, paulistano, 38 anos
Desempregado

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“Põe um fotoshop na foto”, brinca Alexandre ao ser fotografado, pedindo para a ISTOÉ “retirar” seus seios da foto. As mamas são a parte do corpo que mais o incomoda. “É o que me mostra como mulher no mundo. De braços cruzados eu sou homem, quando descruzo sou mulher”. Ele não veste sutiã e esconde os seios com camisas largas. Usou faixa para disfarçar o volume por anos. “Tirar meus seios será como tirar um câncer. Não é uma mutilação, apenas quero adequar o meu corpo”, desabafa. “Meu sonho, toda vez que fecho os olhos, é tomar um banho de mar sem camiseta”.

Ele é um dos que aguardam para passar pela cirurgia de retirada das mamas e dos órgãos reprodutores femininos no Hospital Estadual Pérola Byigton. “Isso pode parecer bizarro, mas é libertador saber que estou chegando lá. Estou pronto”. O passo seguinte será entrar com processo de mudança de nome. “Aí minha vida vai mudar, porque vou ficar com tanta auto-estima que vou conseguir emprego e voltar a ter uma vida produtiva”.

Por causa de um mioma, ele havia conseguido, quatro anos atrás, autorização para retirar os órgãos, mas a médica que a atendeu na data marcada resolveu voltar atrás. “Saí da mesa de cirurgia e tenho o mioma até hoje, ela disse que não queria saber se eu era transexual”. Menstruar é outra agressão todos os meses. “A sociedade já me reconhece como homem, então não é necessário que eu menstrue”.

Na adolescência e juventude, ele acabou se aproximando das lésbicas. “Não sabia nada sobre transexualidade e sofria preconceito até das lésbicas, que me diziam que eu não precisava me masculinizar. Só fui descobrir que eu era transexual aos 31 anos”. Ele acabou se casando com uma homossexual, com quem viveu por 8 anos.

Alexandre tem uma filha de 19 anos. Quando era casado, atendeu ao pedido da esposa e teve relação com um amigo gay.“Foi horrível, senti como se estivesse sendo estuprado. Fomos no médico e a relação aconteceu no período fértil, uma única vez”, relembra. “Eu já tinha falado que não iria fazer mais de uma vez. Então fiquei ‘grávido’. Na maternidade, não
sabia o que fazer, também não consegui amamentar, ela tomou leite materno, mas era na seringa”.

A adolescente o chama de “pãe” e sabe de toda a história. Na certidão de nascimento, Alexandre é a mãe, com o nome de batismo (Alexandra) e o pai é desconhecido. “Ela já sofreu bastante com isso, mas hoje tira de letra, até já terminou um namoro porque o rapaz disse que se envergonhava de mim”. Alexandre só não sabe o que acontecerá com os documentos da filha quando ele mudar para o sexo masculino no RG. A companheira morreu quando a bebê tinha três anos. Hoje, ele namora uma heterossexual, cuja família o aceita.

Alexandre tomou testosterona por anos sem qualquer acompanhamento. Comprava clandestinamente, mas teve dois AVCs quatro anos atrás e teve que parar. “Nasceu até um pelinho de barba no meu rosto”, conta com bom humor. “A testosterona faz o homem trans sair da marginalidade. Só queremos adaptar o nosso corpo ao que a gente é, nascemos com a embalagem errada”.

Sua vida é uma sequência de humilhações. Aos 16, levou uma surra de um grupo de garotos, que queriam que ele provasse ser homem – e ainda teve de ouvir o comentário do policial que apareceu no local: “Também, vestida deste jeito”. Recentemente, tentou alugar um apartamento e ouviu do proprietário que ele não alugava o lugar para gente como ele.

Para Alexandre, hoje há mais informação. “Mas não precisam aceitar, só queremos que nos respeitem”.

 

Carla Amaral, paranaense, 38 anos
Funcionária da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais

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O nome de mulher e o sexo feminino na carteira de identidade são as duas coisas que a paranaense Carla Amaral, 38 anos, mais se orgulha na vida. Ela nasceu um menino, com um nome que diz já não se lembrar, e desde os primeiros anos da infância se comportava como o sexo oposto. Ela gostava de brincar de bonecas e casinha e odiava futebol. Carla conseguiu a nova identidade faz três anos, depois de um processo judicial de dois, onde até a própria mãe teve de ser testemunha de sua transexualidade. E foi a primeira do estado a conseguir adotar o nome social mesmo sem ter feito a cirurgia de troca de sexo. “Meu sexo psicológico é feminino, por isso eu quero ser reconhecida como mulher, independente da minha genitália”.

A vida dela mudou depois de trocar a identidade. “Agora não tenho mais vergonha de ir ao banco ou fazer um curso, por exemplo. Antes ouvia chacotas, risadas, comentários e ficava triste, revoltada ou em silencio, saía chorando. Agora as pessoas são obrigadas a me chamar de Carla, mesmo que achem alguma coisa estranha em mim”, comemora.

A família hoje a respeita, mas a infância e adolescência foram difíceis. “Isso é coisa de menina” era o que ela mais ouvia. Era reprimida, mas escolhia brincadeiras de menina mesmo assim, porque para ela era o natural. “Eu não entendia porque não podia, aí me isolava”. Na escola, diziam que ela tinha problema. Aos 13 anos, já era uma mulher assumida. E foi expulsa de casa. Descobriu a sexualidade ao se apaixonar por um garoto que via pela janela. “Nunca olhei para outra mulher com outros olhos”.

A adolescência foi ainda mais complicada. Ela cresceu rápido – chegou a um 1,78 metro – e era cheia de complexos. Então resolveu ir atrás do corpo que sonhava, botou silicone nos peitos e quadris e fez cirurgia plástica no nariz. Aos 15 anos, começou a usar hormônios, os seios cresceram, os pêlos caíram, a pele ficou mais sensível e as formas se tornaram mais andróginas. Tomou hormônio por 20 anos.

Carla chegou a se prostituir para sobreviver. Não arrumava emprego por causa do preconceito. “Me prostitui por três anos, porque não conseguia trabalho e quase passei fome”. Aos 21, conheceu um grande amor, um heterossexual que estava prestes a se casar e largou tudo por sua causa. Ficaram juntos por cinco anos, como um casal normal.

Hoje, ela aguarda para fazer a cirurgia de mudança de sexo pelo SUS, vai ganhar uma neovagina. “É estranho ter um órgão sexual masculino, é como se estivesse faltando alguma coisa em mim. Muitas vezes acordei sem vontade de viver, não conseguia me olhar no espelho, vi gente se mutilar
sozinha, mas eu tive medo. Você vive na condição de um gênero, mas quando se vê nua, se depara com a realidade”.

Para ela, a eliminação de Ariadna, do BBB, se deve ao preconceito, já que divulgaram antes a condição dela, desnecessariamente. “A transexualidade ainda é algo novo para as pessoas, mas houve avanços. Esta semana fui à posse de uma amiga trans como professora. Ela nem tem nome de mulher ainda, mas a chamaram pelo nome pessoal”.

Michelly X, paulistana, 38 anos
Estilista 

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A transformação de Alexandre em Michelly foi gradual. Na adolescência, ela achava que era apenas um rapaz gay. “Mas eu era um gay infeliz, não me reconhecia naquela turma”. A primeira vez que ela se vestiu de mulher, se encontrou. Ela tinha 20 anos. Durante uma década, ela se vestiu de mulher apenas aos fins de semana. “Eu não via a hora do final de semana chegar, era o momento mais feliz”. Naqueles tempos, trabalhava como transformista ao mesmo tempo em que dava os primeiros passos como estilista. Hoje tem um ateliê próprio no Tatuapé, São Paulo, com dois funcionários. Faz roupa sob encomenda. Há seis anos, vive 24 horas como um travesti. Completou sua transformação ao colocar silicone no bumbum, nos seios, mudar o nariz e aumentar o cabelo. E toma hormônios, para deixar o corpo mais arredondado.

Ela só não quer fazer cirurgia de mudança de sexo porque tem medo de perder o prazer. “Me sentiria castrada”. Casada há 16 anos com um homem de orientação heterossexual, ela revela que ele gostaria que ela fizesse a cirurgia, mas já aceitou a vontade dela.

A estilista acredita que só conseguiu ter uma profissão comum e fugir à sina da grande maioria dos travestis – a prostituição – porque foi compreendida e acolhida pela família. Michelly, aliás, é uma homenagem à filha que a mãe dela perdeu logo após o parto. Apesar do trabalho no ateliê, ela mantém seu viés artístico. Em 2008, participou de um concurso de travestis no Silvio Santos. No ano passado, representou o Brasil no Miss International Queen, na Tailândia. Em 2000, foi a Miss Brasil Gay.

Para fugir do preconceito, mais forte contra os travestis e menos com os transexuais, Michelly busca ser discreta, mesmo com seus 1,86 metro de altura. “Não uso muita maquiagem, evito salto e uso roupas discretas. Vou muito à rua 25 de Março comprar tecido. Lá, se reconhecem que você é travesti ou transex, te agridem”.

Michelly já cogitou ter um filho, mas chegou à conclusão de que é melhor não concretizar esse sonho. “Amo crianças e adoraria ter uma. Mas ela seria muito discriminada na escolinha e sofreria demais. Como ficaria a cabeça de uma criança assim?”. A sociedade evoluiu muito, acredita ela, mas ainda há muitas barreiras a serem vencidas.