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O mundo não era um prenúncio de paz. Nem de segurança. O jogo era duro em 1950. Em 14 de fevereiro, a China e a União Soviética selavam um acordo de amizade. O risco de transformar a Guerra Fria em uma inflamável partida sem regras aumentou em 25 de junho, dia da abertura da Copa do Mundo: Os Estados Unidos iniciavam o ataque à Coreia do Norte. Na manhã da final do Mundial, o infausto 16 de julho, os jornais informavam que o presidente norte-americano, Harry Truman, iria intensificar as ações na península asiática.

O Brasil também não vivia tempos de bonança. Era ano de eleições turbulentas. Na redemocratização do país, ocorrida no pós-guerra, Getúlio Vargas criara à direita o Partido Social Democrático (PSD) e à esquerda o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O meio de campo embolara com as ações de um árduo adversário, a União Democrática Nacional (UDN), aos olhos dos antagonistas um partido golpista e representante dos interesses financeiros dos EUA. No ataque da agremiação sobressaía-se um craque em virulência, oratória e conspiração: Carlos Lacerda.

Antes de eleições de 1945 para a presidência, vencidas pelo marechal Eurico Gaspar Dutra (ex-ministro da Guerra de Vargas), ele brandira contra o candidato do PSD: “votar em Dutra é votar no fantasma de Hitler”. Em 1950, diante de uma possível candidatura de Getúlio (pelo PTB), Lacerda evidenciaria o golpismo da UDN: “O sr. Getúlio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.”

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Maracanã cheio em partida da Copa de 1950

O Brasil tinha 51,7 milhões de habitantes. O Rio de Janeiro, Distrito Federal, 2,3 milhões. A maioria dos brasileiros (50,3%) com mais de 15 anos era analfabeta (hoje, são 9,7%). Vivia-se, em média, 46 anos. A maior parte das famílias era composta de seis filhos.
Era um país essencialmente agrário, e, entre outras mazelas, carente de estradas. A industrialização, embora incipiente, crescia sobretudo em virtude da infraestrutura de siderurgia criada por Vargas no decorrer da guerra. Dutra, acusado de desperdiçar em plástico e outras quinquilharias as reservas de dólares reunidas durante o conflito mundial e, por isso, desequilibrado a balança de pagamentos, não tinha perfil para fazer um sucessor. Apoiou Cristiano Machado, abandonado pelo próprio PSD, dando origem ao neologismo “cristianização” — incorporado ao léxico político para identificar alguém imolado pelo partido que o lança candidato.

“Ao contrário de Getúlio, Dutra não tinha um projeto para o país”, resume Israel Pinheiro, professor do Departamento de Política da Universidade Federal da Bahia e presidente da Associação dos Professores Universitários da Bahia. “Foi um político medíocre, da área militar alinhada aos interesses dos Estados Unidos, que, em 1949, criaria a Escola Superior de Guerra. Antidemocrático, reprimiu os movimentos populares. Diante de qualquer pergunta contundente, respondia que agiria a partir do que dizia o ‘livrinho’. Era assim que chamava a Constituição.”

Em 1950, os analfabetos eram 50,3% da população (hoje,
são 9,7%). Era um país com essência agrária, apesar
do crescimento da indústria

Ainda segundo Pinheiro, viviam-se tempos da polarização. “Ou alguém era taxado de ‘entreguista’ se aliado a uma política de assimilação do capital internacional, ou de ‘comunista’, no caso de apoiar causas nacionalistas, como o monopólio do petróleo. Esse dualismo simplório e radical não era promissor para a sociedade. Mas havia uma grande inserção social na discussão dos destinos do país, que não se vê mais.” Pinheiro completa: “Hoje, no terreno das ideias, as novas gerações não sabem diferenciar um político do outro”.
Uma das bandeiras de Getúlio Vargas, lançado à presidência dez dias após a derrota para o Uruguai no Maracanã, era justamente “O Petróleo é Nosso”. Sua candidatura surpreendera. Embora investido em um mandato parlamentar (era senador), havia preferido o isolamento em sua fazenda sulista. O ex-ditador fizera inúmeros inimigos no Estado Novo (1937-1945) — que comandara com mão de ferro —, incluindo os militares que o depuseram. Ainda assim, venceu o pleito em 3 de outubro, com 48,7% dos votos.

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Jules Rimet entrega taça para uruguaio Obdulio Varela

Os opositores puseram em discussão a legitimidade da eleição, por não ter havido maioria absoluta no sufrágio — exigência que não constava da Constituição. Só em 18 de janeiro de 1951 o Supremo Tribunal Eleitoral garantiu a posse de Vargas, efetivada 13 dias depois. O presidente recebeu um Brasil não apenas em crise política. Mas também com uma economia jogada para escanteio.

“Mesmo os países devastados pela guerra começavam a ver a prosperidade, mas o Brasil ainda estava à margem do mundo que faz diferença”, afirma Maria Antonieta Del Tedesco Lins, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Para a economista, é impossível uma comparação daquele Brasil com o de hoje. Segundo ela, são dois mundos estanques. “É preciso lembrar que não havia nem mesmo um Banco Central para regular a economia. A Sumoc [Superintendência da Moeda e do Crédito], vinculada ao Ministério da Fazenda, deveria, em tese, assumir esse papel, mas tinha caráter apenas normativo. O crédito era determinado pelo Banco do Brasil, cujo presidente ganhava importância de ministro. Havia muito clientelismo e cada produto tinha uma taxa de câmbio diferente.”
A professora lembra, ainda, que apenas em 1952 foi criado o BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), hoje BNDES: “Foi fundamental para a industrialização do país. E ainda é. Depois da recente crise internacional, tornou-se ainda mais. É um dos responsáveis pela estabilidade do Brasil de hoje, com economia organizada e em ascensão.”

Presidente da Crowe Horwarth RCS, a sexta maior empresa de auditoria do país, e vice-presidente de finanças do Corinthians, Raul Corrêa da Silva vê muito nítidas as diferenças econômicas acarretadas pela primeira e pela segunda Copa no Brasil. “Em 1950, gastamos mais do que arrecadamos. A Copa não nos rendeu nada, só a derrota”, analisa. “Agora, o Brasil é a bola da vez. Teremos dez anos de crescimento. Para a Copa e a Olimpíada, os investimentos em infraestrutura, como aeroportos, hotéis, sistemas viários etc., serão amplos, vindos de todas as partes. Da Fifa, inclusive, atraindo patrocinadores. A entidade conseguiu US$ 2,5 bilhões para a Copa da África do Sul. Dos chamados BRICs, somos o único país com sistemas bancário, legislativo e judiciário consolidados. Não há por que recear investir aqui.”

Em 2014 também haverá eleições presidenciais. Menos turbulentas, é o que se prevê. Se o Brasil ganhará a Copa não passa de exercício de futurologia, mas tudo leva a crer que ganhará com ela. 

 

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