Sabe a última do Chávez? Em um de seus conhecidos arroubos de retórica, o mercurial presidente da Venezuela, Hugo Chávez, quase melou a I Cúpula da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa) ao se recusar a assinar a declaração dos presidentes que definia a criação de uma área de livre-comércio na América do Sul. O rompante acabou indo parar nos jornais de tevê porque o Itamaraty decidiu que reuniões de cúpula como a da Casa merecem ser transmitidas ao vivo pela Radiobrás, a emissora oficial. E assim todo mundo viu Chávez amuado, Lula irritado e Alejandro Toledo, presidente do Peru, espantado. Mas, depois de meia hora de conversa, Chávez convenceu-se dos argumentos de que não era possível a cúpula terminar sem um documento oficial e assinou a declaração conjunta. Mas conseguiu que sua proposta (elaborada junto com o presidente do Uruguai, Tabaré Vasquez) de criação de um grupo de trabalho para elaborar um plano estratégico de metas para a América do Sul até 2010 fosse aceita. Mais ainda, o grupo terá 90 dias para apresentar seu trabalho aos presidentes. A tempo, portanto, da reunião de cúpula do Mercosul, marcada para dezembro próximo.

Mas quem pensou, pelas imagens, que Chávez estava irritado para valer com Lula e seus pares, tendo assinado a contragosto o tal documento dos presidentes, se enganou. Encerrada a solenidade com o discurso de Eduardo Rodríguez, presidente da Bolívia, Chávez e Lula subiram para uma sala reservada no Itamaraty e passaram quase três horas em um almoço de trabalho, no qual todos os ponteiros da cada vez maior cooperação entre Brasil e Venezuela foram acertados. “Hoje, já entendemos bem o estilo do Chávez. Ele gosta de chegar meio de surpresa, fora da agenda. Passa uma imagem de militar durão, mas acho que é marketing. Ele é muito preparado e um grande articulador e negociador”, admitiu a ISTOÉ uma fonte do Itamaraty. Na verdade, o governo brasileiro hoje tem certeza de que Chávez, quando às vezes parecer atropelar o ritmo normal das negociações, indica apenas sua vontade de ver a Venezuela como sócio efetivo do Mercosul no menor prazo possível.

A construção de uma refinaria de petróleo em Pernambuco, que custará nada menos que US$ 2,5 bilhões e será tocada em sociedade pelas duas estatais petrolíferas do Brasil e Venezuela (Petrobras e PDVSA), respectivamente, é um bom exemplo das verdadeiras intenções de Chávez em termos de parceira e integração continental. O petróleo a ser refinado virá da Venezuela, com os destilados (gasolina, diesel etc., com maior valor agregado) sendo exportados pelas duas gigantes do petróleo para clientes no Exterior. Chávez também quer injetar US$ 5 bilhões no Banco Sul-Americano de Desenvolvimento, sonho seu e de Lula para viabilizar o crescimento do continente com recursos próprios. E reservou a área mais promissora do Vale do Orinoco, onde se especula que podem haver reservas de mais de 40 bilhões de barris de petróleo, para ser explorada em conjunto pela Petrobras e pela PDVSA.

E o Brasil está aproveitando a fartura de dólares do petróleo do vizinho venezuelano para vender cada vez mais para os conterrâneos de Chávez. Apenas de janeiro a agosto deste ano, já foi exportado US$ 1,37 bilhão de produtos brasileiros para a Venezuela, quase o mesmo que durante todo o ano passado, representando um aumento de 63,81%. No Itamaraty, isso indica que, na prática, a integração entre os países do continente já acontece. “Chávez é um dos que querem acelerar o processo de integração, seja se tornando sócio efetivo do Mercosul, seja criando logo a nova área de livre comércio”, afirma uma diplomata.

Nesse xadrez internacional, o próximo encontro entre os presidentes sul-americanos será em dezembro, na cúpula do Mercosul. Talvez lá seja atendida uma reivindicação de Chávez, a de mais tempo de discussão dos temas entre os próprios presidentes. A idéia proposta por Lula, de que os chanceleres se reúnam 15 dias antes, façam um esboço de projeto ou documento, que será analisado previamente por cada dirigente, poderá passar pelo seu primeiro teste. “Não gosto do modelo de cúpula que se usa. Os presidentes chegam para jantar e assinam uma coisa já pronta”, reclamou Chávez em coletiva de imprensa. Mas nada impede que, daqui a uns 30 dias, Chávez avise a Lula que está chegando para uma nova reunião. Como diz o jornalista Carlos Heitor Cony, “o problema da América Latina não é o subdesenvolvimento, é a retórica”. Chávez, que tem pinta de grosso, mas foi primeiro aluno em todos os cursos que fez no Exército de seu país e ostenta um grau de mestre em ciência política com louvor, talvez seja um bom exemplo desse exagero na retórica. Depois de Fildel Castro, é claro.