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Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em abril, que a Lei da Anistia valia não só para os que lutaram contra a ditadura, mas também para os agentes do governo responsáveis por torturas e outros crimes durante o regime militar, o polêmico tema pareceu encerrado. Por intervenção de um tribunal internacional, no entanto, o julgamento da principal Corte do Brasil pode não ter sido a pá de cal sobre o assunto. Está para sair o resultado de um processo que corre na Corte Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA) destinado a incriminar os responsáveis pela morte de 60 camponeses e guerrilheiros no Araguaia. Em tese, segundo os especialistas, a decisão, com grande possibilidade de ser favorável, teria peso para forçar a revisão do entendimento do STF. “É um escândalo internacional: somos o único país da América Latina que não julgou inválido esse perdão a torturadores”, disse o jurista Fábio Konder Comparato, responsável pela contestação da Lei da Anistia no STF.

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LUTA
A lei, negociada pelo general Figueiredo,
foi uma resposta aos atos pela anistia, liderados
pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns

O entendimento da Corte da OEA deverá ser, basicamente, o mesmo defendido pelo historiador Roberto Ribeiro Martins no livro “Anistia Ontem e Hoje”: “Como Pode Ser Anistiado Alguém Que Não Foi Condenado?” Pela linha de raciocínio de Martins aplicar anistia a quem não foi punido seria um grave erro jurídico. Essa também é a opinião da advogada do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) Beatriz Affonso, que representou as famílias de vítimas do Araguaia que entraram com a ação na OEA. Segundo ela, a prática dos torturadores foi incluída apenas em um apêndice da lei que se refere aos “crimes conexos”, enquanto os combatentes da ditadura tiveram acusações formais, anuladas pela Lei da Anistia. “Como o Brasil pode se apresentar como um líder internacional se não julga os agentes que, em nome do Estado, violaram os direitos humanos de cidadãos?”, questiona Beatriz.

O STF “nem sequer teria condições de incluir no acórdão as pessoas que praticaram os crimes de tortura”, comenta o presidente da OAB-RJ, Wadih Damous. “Como pode anistiá-las se não sabe quem são?” Damous não acredita, no entanto, que uma decisão contrária da OEA traga qualquer mudança significativa, mesmo que a Corte esteja hierarquicamente acima do Supremo. “Não há punição para o País que não cumpre uma decisão daquela Corte e, aparentemente, não há disposição do governo de mexer no assunto.” Já a advogada do Cejil acha que há esperança. “Seria um vexame internacional para o País ignorar a Corte da OEA.”

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O historiador Martins, que foi condenado pelos tribunais da ditadura, é um anistiado. Militou na década de 1960 contra o regime militar e afirma ter sido torturado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante em São Paulo do Destacamento de Operações Internas do Exército, o temido DOI-CODI. Ele não acredita que julgar os torturados seria como reabrir antigas feridas. “Só a verdade cicatriza”, diz ele. Em seu livro sobre a anistia, Martins sustenta que em nenhuma época da humanidade ações de tortura, praticadas por agentes do governo, foram passíveis de anistia. “Alguém imagina que o Tribunal de Nuremberg poderia não ter existido?”, indaga o autor. A diferença, porém, é que os nazistas alemães haviam sido derrotados, enquanto no Brasil foi o próprio governo militar, na Presidência do general João Figueiredo, que negociou a anistia com setores da Oposição. A campanha pela anistia no Brasil teve início em 1968, liderada por nomes como o do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Essa luta foi decisiva para a redemocratização do País. “O que ainda está faltando é uma reparação histórica”, diz Martins. Ele não acredita que seja possível levar para a prisão oficiais responsáveis pela tortura que hoje já estão aposentados.

A manutenção da Lei da Anistia foi decidida por 7 votos a 2, em 29 de abril, pelo STF. Foi uma decisão considerada mais política do que técnica, sem maior argumentação jurídica. O presidente do tribunal, ministro Cezar Peluzo, justificou seu voto dizendo que “só o homem sabe perdoar, só uma sociedade superior e qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos pode perdoar.” O ex-presidente do STF ministro Gilmar Mendes votou a favor da manutenção para “esquecer o passado e viver o presente com vistas ao futuro”.  A intenção era de evitar, eventualmente, reabrir um tema que poderia provocar uma crise com os militares.