Confira vídeo em que o editor-executivo Antônio Prado e a repórter Juliana Dal Piva comentam os bastidores da reportagem:

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O CEMITÉRIO
O MPF suspendeu as escavações com
apenas cinco dias de trabalho e não há
previsão de retomada das buscas

Em um cemitério da zona leste de São Paulo, o maior da América Latina, está enterrada viva a memória de um perío­do morto da história recente do Brasil. Instaurada no País em 1964 com um golpe de Estado, a ditadura militar sepultou clandestinamente no cemitério de Vila Formosa corpos de opositores políticos que a ela resistiram com armas. A ditadura morreu em 1985 quando José Sarney foi empossado na Presidência da República após a morte do candidato eleito pelo colégio eleitoral, Tancredo Neves. A memória, que os militares tentaram varrer para debaixo da terra mas sobrevive nos dias atuais de plena democracia, é justamente a desses militantes que foram torturados e assassinados pelo então regime de exceção. A eles foi dada a esdrúxula situação jurídica de “desaparecidos políticos”, ou seja, não estão nem vivos nem mortos – mas suas “vozes” insistem em não se calar para denunciar a circunstância em que foram enterrados. Na semana passada, o Ministério Público Federal (MPF) promoveu por cinco dias escavações no local (120 horas de procura contra cerca de 185 mil horas que durou a ditadura), mas já as suspendeu para que o caso seja mais bem analisado. A suspensão dos trabalhos é precoce. Pelo menos nove corpos de militantes estão ali enterrados, e documentos obtidos por ISTOÉ comprovam isso. São laudos necroscópicos do IML (documentos oficiais, portanto) nos quais se lê que, com nomes verdadeiros ou trocados, militantes mortos foram enterrados em Vila Formosa.

O cemitério serviu, na linguagem dos porões do regime, de local de “desova” de corpos a partir de 1969 e 1970 – primeiro período de repressão desenfreada após a promulgação do AI-5, que suspendeu as garantias individuais no País. ISTOÉ descobriu que o primeiro opositor que chegou morto a Vila Formosa foi Carlos Roberto Zanirato. A causa de sua morte, assim como a de dezenas de militantes ao longo de 21 anos de obscurantismo, foi dada pelo IML como “suicídio”. A requisição de exame de Zanirato é a de número 2.777/69. No campo para preenchimento de seu nome, o IML cravou: “desconhecido”. O Departamento Estadual de Ordem Política e Social chegou ao paroxismo de escrever que ele se suicidara, embora seu corpo tenha chegado à mesa de necropsia com as mãos algemadas. Zanirato desertara do Exército com o capitão Carlos Lamarca e com ele integrou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), responsável pela guerrilha do Araguaia.

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Os restos mortais de pelo menos outros seis militantes da VPR também estão em Vila Formosa: Alceri Maria Gomes da Silva, Edson Neves Quaresma, Joelson Crispim, José Maria Ferreira Araújo, Yoshitane Fujimori e Antonio Raimundo Lucena. “Eu nem sequer fui informada pelas autoridades de que estavam procurando o corpo de meu marido”, diz Damaris Lucena, viúva de Raimundo Lucena. Aos 85 anos e vitoriosa na luta contra um câncer de estômago, Damaris foi, na época, torturada por 23 dias. Entre seus algozes, segundo ela, estava o tenente-coronel Maurício Lopes Lima – o mesmo que a presidente eleita Dilma Rousseff reconhece como sendo um de seus torturadores. Damaris só não morreu porque foi banida do Brasil em troca da libertação do ex-cônsul japonês em São Paulo Nobuo Okuchi. O documento do IML obtido por ISTOÉ, que comprova que os restos mortais de Lucena estão em Vila Formosa, é o de número 865/70. A requisição de seu exame foi encaminhada com a palavra “Terrorista” escrita ao alto, em letras grandes, grifada, circulada e cercada por quatro traços. Quem caprichou foi o delegado Jair Ferreira da Silva. Ele escreveu que Lucena morreu em tiroteio. O IML atestou que a causa mortis foi “anemia aguda”. No campo sepultamento está anotado “cemitério de Vila Formosa”. O laudo 4.480/70, encabeçado com um “T” de terrorista, indica que também nesse cemitério está o corpo de José Maria Ferreira de Araújo, enterrado como Edson Cabral Sardinha. Segundo a polícia, morreu de “mal súbito assim que adentrou o distrito”. O IML dá a causa da morte: “indeterminada”. No item sepultamento consta, igualmente, “Vila Formosa”.

Também estão nesse cemitério corpos de militantes de outra organização, a Ação Libertadora Nacional (ALN), uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro, que optou pela luta armada e era comandada por Carlos Marighella. Em setembro de 1969, Sérgio Roberto Corrêa e Virgílio Gomes da Silva foram enterrados como indigentes em Vila Formosa. Sob o codinome de Jonas, Virgílio foi um dos chefes do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick em setembro de 1969 – foi libertado em troca de 15 presos políticos, então banidos do País. Jonas foi preso e faleceu após 12 horas de tortura na Operação Bandeirante (Oban) – gene do que viria a ser o DOI-Codi, um dos maiores aparatos de tortura do Estado já montado na América Latina. Tendo o Brasil a partir de 1º de janeiro Dilma Rousseff na Presidência da República, um novo alento vem aos familiares que já esperam uma eternidade para dar sepultura digna a seus parentes. “Qualquer coisa que faça nesse sentido será bem-vinda”, diz Maria Amélia Teles, ex-presa e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Se nos ajudar, a presidente Dilma fará justiça com a sua própria história.”


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