Primeiro veio a modernidade, com a valorização do indivíduo e do mercado e a confiança no progresso pela ciência. Tradição e fé foram banidas pelo pensamento iluminista em nome de um futuro promissor que nunca chegou. Em vez de bem-estar generalizado e felicidade mundial, a modernidade trouxe cidades inchadas, miséria, poluição, desemprego e stress. A confiança no futuro caiu por terra e foi substituída, na segunda metade do século XX, por um hedonismo sem ilusões. Planos de carreira, projetos de família e toda atitude que visasse a uma escalada racional rumo ao porvir foram substituídos pelo culto ao presente. O ocaso das ideologias e a pulverização das religiões a partir dos anos 70 trouxeram a certeza de que os tempos vindouros não seriam as maravilhas prometidas. A geração do desbunde interpretou esse sentimento de maneira festiva, com a revolução sexual e de comportamento. Essa fase, chamada pós-modernidade, também já acabou. Foi substituída por uma nova era, na qual a festa cedeu espaço à tensão. Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky, abriram-se as portas da hipermodernidade.

Professor de filosofia na universidade de Grenoble, na França, Lipovetsky despertou interesse – e muitas críticas – ao se debruçar sobre temas considerados, até então, pouco importantes pela intelectualidade. É de sua lavra, por exemplo, o livro O império do efêmero (Cia. das Letras), de 1987, no qual analisou o fenômeno da moda. No ano passado, publicou na França outro petardo de novidade: Le luxe éternel (ed. Gallimard), ainda inédito no Brasil, em que faz suas considerações sobre o crescente consumo de luxo. Lipovetsky chega a São Paulo no dia 18 para lançar Os tempos hipermodernos (Editora Barcarolla), escrito em parceria com Sébastien Charles, professor de filosofia da Universidade de Sherbrooke, no Canadá. Nas duas semanas que ficará no Brasil, participará de debates na Faap, em São Paulo, e na Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), em Campinas, e ministrará a aula inaugural de comunicações na PUC de Porto Alegre.

Polêmico e cativante, é o próprio Lipovetsky quem dá a dica para entender sua obra mais recente. “De fato, a pós-modernidade nunca existiu. O termo implica fim da modernidade, mas ela nunca acabou. Entre 1970 e 1990, houve apenas um breve período de redução das pressões sociais. Mas elas reapareceram ainda mais fortes”, diz. “No momento em que triunfam a tecnologia genética e a globalização liberal, o rótulo pós-moderno já ganhou rugas. Aliás, tínhamos uma modernidade limitada e hoje temos uma modernidade consumada, uma segunda modernidade a que chamo hiper.” Segundo ele, os três elementos centrais da primeira modernidade – o individualismo, o cientificismo e o mercado – estão no auge. A globalização e o fim das grandes ideologias produziram um individualismo sem precedentes: daí o fenômeno da moda e do consumo de luxo, responsáveis pela aquisição de identidade numa época em que ela já não é determinada pela posição política ou religiosa. O cientificismo inaugurado no iluminismo é pequeno quando comparado ao hipercientificismo atual, capaz de controlar o nascimento, o envelhecimento, a alimentação, a beleza e a morte (inseminação artificial, clones, transgênicos, cosméticos e vacinas são os sintomas).

Objetos de desejo – Finalmente, a produção de mercado evoluiu para uma sociedade de hiperconsumo, na qual a mídia e a publicidade ocuparam o espaço da Igreja e do Estado como poderosas instituições de coação. Nesse mundo novo, modelos tornam-se ícones de sucesso profissional e grifes despontam como os principais objetos de desejo. Perpetua-se o que Lipovetsky chama de sociedade do excesso. “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper? O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superlativa?”, escreve ele.

Coordenador do programa de pós-graduação em comunicação da PUC do Rio Grande do Sul e doutor em sociologia pela Sorbonne, Juremir Machado da Silva bebeu da fonte dos mesmos estudiosos franceses que ajudaram a compor a interpretação de Lipovetsky, de Jean-François Lyotard a Jean Baudrillard. “Gilles Lipovetsky sempre foi o mais entusiasta da pós-modernidade, caracterizada por uma sociedade pós-moralista, aberta para a diferença. Agora ele ressurge cauteloso, ciente de que as coisas não funcionaram tão bem. Se a pós-modernidade foi uma festa, a hipermodernidade é a ressaca”, compara. No ano passado, Juremir Machado traduziu o pequeno livro de Lipovetsky, Metamorfoses da cultura liberal (ed. Sulina). “Baudrillard falava em simulacro. A humanidade colocou o virtual acima do real, passou a preferir o replay do lance pela tevê ao gol visto no estádio. A cultura do excesso é isso: as coisas parecem verdadeiras, mas são exageradas. São bolhas que, se a gente colocar um alfinete, estouram”, completa.

Exagerado – Os habitantes desse mundo exagerado sentem o peso da cultura do excesso. No lugar das velhas instituições – que exerciam uma disciplina autoritária – surge o autocontrole, mais careta do que anunciavam os arroubos libertários de 30 anos atrás. Na opinião do filósofo canadense Sébastien Charles, isso se dá porque a desagregação do mundo da tradição é vivida não mais sob o regime da emancipação, e sim sob o da tensão, provocada por fantasmas como desemprego, colesterol, stress e ataques terroristas. O “carpe diem” (aproveite o dia) descontraído transformou-se em presencialismo angustiado, por falta de perspectiva. “É o medo o que importa e o que domina em face de um futuro incerto. A profissão de fé não é mais ‘goze sem entraves’, e sim ‘tenha medo em qualquer idade’”, resume ele.

Com isso, surgem novas patologias individuais como o consumismo, a anorexia, a bulimia, o pânico, o voyeurismo perante a hiper-realidade dos reality shows. “O homem está desbussolado. Na primeira modernidade, a sociedade era ‘pai-orientadada’, organizada verticalmente, e o grande desafio era descobrir como chegar à diretoria, ao topo da pirâmide familiar ou profissional. Hoje, a questão é: aonde ir?”, diz o psicanalista Jorge Forbes, que assina a orelha da edição brasileira de Os tempos hipermodernos. “A psicanálise não é mais ferramenta para que o paciente se liberte do passado e enfrente o futuro já conhecido. Ele tem que descobrir qual caminho seguir”, conta.

Enquanto a sociedade aprende a lidar com a ausência de caminho preestabelecido e descobre como viver no mundo não-pai-orientado, a hipermídia ajuda a criar a referência que falta. Na hipermodernidade, a identidade não é natural ou herdada. Ela precisa ser composta. A moda, o luxo e a indústria cosmética – que cresce 20% ao ano no Brasil – contribuem para isso. “O principal motivo para a aquisição de artigos de luxo não é mais a busca por status. É a vontade não-racional de adquirir identidade. Junto com uma etiqueta vêm embutidos conceitos de tradição”, considera Carlos Ferreirinha, coordenador do MBA em Gestão do Luxo, da Faap. Isso significa que, a tiracolo, as pessoas levam elementos que refletem o que têm na essência. Idéia semelhante é compartilhada pelo antropólogo mexicano Mauricio Genet Guzmán Chávez, que apresentou este ano a tese de doutorado em sociologia política “O mais profundo é a pele: sociedade cosmética na era da biodiversidade” na Universidade Federal de Santa Catarina. “O corpo adquire lugar central no processo identitário. Tatuagens e piercings dizem muito sobre as pessoas. A organização dos grupos na sociedade cosmética é baseada na aparência, na roupa, em elementos externos”, diz o autor. É como se, diante de uma crise de identidade ou de uma repentina depressão, bastasse recorrer a um tatuador ou a um cirurgião plástico para resgatar a sensação de conforto.

Ética do futuro – Na sociedade hipermoderna, tudo pode ser consumido. Ou quase. Curiosamente, cresce a noção de que a própria saúde e a do planeta são intocáveis. Por isso vê-se a crescente medicalização da vida e uma atenção especial em relação ao meio ambiente, que Gilles Lipovetsky chama de ética do futuro. “Ante as ameaças da poluição atmosférica, da mudança climática, da erosão da biodiversidade, da contaminação dos solos, afirmam-se as idéias de desenvolvimento sustentável e de ecologia industrial, com o encargo de transmitir um ambiente viável às gerações que nos sucederem”, escreve. Ao mesmo tempo, voltam elementos do passado, travestidos em sentimento nostálgico. Na pós-globalização, também a busca das origens soma-se à moda e à vaidade nas trincheiras da identidade. Arte naïf, música regional, modelitos vintage garimpados em brechós e turismo de memória são, segundo Lipovetsky, grandes tendências culturais para os próximos anos. Em algum lugar do futuro – mesmo que seja em um passado revisitado – estará a bússola de que o homem hipermoderno tanto precisa.