Sentindo-se vítima de denúncias contra os presidentes do Banco Central, Henrique Meirelles, e do Banco do Brasil, Cassio Casseb, além do tesoureiro do PT, Delúbio Soares, o governo resolveu atacar a liberdade de imprensa: propôs ao Congresso a criação de um Conselho Nacional de Jornalismo para fiscalizar e punir jornais e jornalistas. Mas uma revelação de um repórter em artigo enviado para o livro a ser lançado pelo ex-presidente da Câmara Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) mostra que a descoberta da verdade independe de mecanismos repressivos. Em 1992, Fernando Collor teve seu impeachment aprovado pelo Congresso. Um ano depois foram cassados parlamentares por corrupção na célebre CPI do Orçamento. No centro dos dois casos estava Ibsen. Político em franca ascensão, ele comandou a sessão que abriu o caminho para o impeachment. Um ano depois, enfrentou um calvário que culminaria em sua cassação, escudada em uma acusação de envolvimento com a Máfia do Orçamento.

Passada uma década surge uma revelação que obriga a revisão da história. O jornalista Luís Costa Pinto (Lula), à época editor da revista Veja em Brasília, decidiu contar os bastidores da reportagem de capa de sua autoria, em novembro de 1993, onde afirmava que a CPI descobrira que Ibsen movimentou US$ 1 milhão em suas contas. O relato acusa Waldomiro Diniz, então assessor do atual ministro José Dirceu (PT-SP), de ter vazado uma “falsa prova”. Além de confessar um erro, Costa Pinto revela detalhes da história que foi decisiva para incinerar Ibsen. Junto com o mandato, o ex-presidente da Câmara perdeu dez quilos e tempo indagando os motivos de sua ruína política. ISTOÉ o procurou para falar de seu livro e teve acesso ao artigo de Costa Pinto.

Em novembro de 2000, Ibsen almoçou com o jornalista na Churrascaria OK, em Curitiba, quando soube dos bastidores. “A CPI do Orçamento caminhava para um desfecho melancólico, pois só ia cassar deputados do chamado ‘baixo-clero’ (…). Foi nesse ambiente que se perpetrou um dos grandes erros jornalísticos contemporâneos”, contou Costa Pinto, no artigo que depois enviou a Ibsen. “Este depoimento é seu e pode ser usado da maneira que você quiser”, escreveu no e-mail. Trata-se de um raro mea-culpa em 2.804 palavras que dá pormenores e nomes. Costa Pinto conta que em novembro de 1993 foi procurado por uma figura que ficaria famosa dez anos depois: Waldomiro Diniz, assessor da CPI e já então braço direito dos parlamentares petistas José Dirceu e Aloizio Mercadante. “Pegamos o Ibsen”, disse Waldomiro. O depoimento de Costa Pinto, hoje consultor do presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), revela uma coragem incomum em desnudar um fato já sepultado na memória. Mostra também como Waldomiro vazava sigilos para incriminar investigados. A morte política de Ibsen tirou do caminho um forte candidato à Presidência. O PMDB se dividiu, mas na eleição de 1994 Lula acabou superado por Fernando Henrique Cardoso, após a edição do Plano Real.

Versão mantida – O jornalista conta que a revista identificou o erro nas contas de Waldomiro: não seria US$ 1 milhão, mas apenas US$ 1 mil. Como a edição estava praticamente fechada – relembra Costa Pinto –, o editor-executivo, Paulo Moreira Leite mandou encontrar alguém que sustentasse a versão de US$ 1 milhão. Acharam o deputado Benito Gama (PFL-BA), membro da CPI e ex-presidente da CPI/Collor. Costa Pinto diz que contou a Benito sobre o erro. A reportagem manteve o valor de US$ 1 milhão com a frase de Benito: “É fundamental não errarmos nas contas de Ibsen. E não erramos.” Erraram sim, de propósito.

A seguir, o artigo escrito pelo jornalista Luís Costa Pinto, que foi editor e chefe da sucursal de Veja no Recife e em Brasília, repórter dos jornais O Globo e da Folha de S.Paulo, editor da revista Época e editor-executivo do Correio Braziliense. Hoje, é consultor de comunicação e de marketing político:

(…) Em 1992, quando o governo Collor perdeu as condições de sustentação política no Congresso e definhava à mercê da Comissão Parlamentar de Inquérito que lhe expunham as entranhas, o deputado Ibsen Pinheiro tornou-se um aliado seguro e secreto da corrente suprapartidária que pediria a cassação do presidente da República. “O que o povo quer, esta Casa termina querendo”, vaticinou o ex-presidente da Câmara dos Deputados ao receber, na primeira semana de setembro daquele ano, a formalização do pedido de impeachment presidencial no Salão Verde do Congresso.

A retórica começava a aprontar uma cilada para ele: o povo, representado em protestos nas ruas pela sociedade civil organizada, de fato queria o impeachment. O Parlamento, em sua maioria, ainda não. Existia certa margem de negociação capaz de evitar a perda de mandato de Collor, mas Ibsen foi peça-chave na articulação que estreitou o raio de ação dos estrategistas palacianos. Escreviam-se, naquela ação surda do presidente da Câmara, as primeiras linhas do epílogo de sua vida parlamentar em Brasília – a cassação, em 18 de maio de 1994, por alegada colaboração com a “Máfia dos Anões do Orçamento”.

Numa sexta-feira do mês de setembro de 1993, o repórter Policarpo Jr., meu colega na redação brasiliense de Veja, obteve o furo de reportagem que mais tarde deu origem à CPI do Orçamento. Depois de insistir por uma semana, ele conseguiu uma entrevista exclusiva com José Carlos Alves dos Santos, ex-assessor da Comissão Parlamentar Mista de Orçamento do Congresso Nacional. José Carlos estava preso em uma delegacia de Brasília por suspeita de assassinato de sua mulher, Maria Elizabeth Lofrano. Na entrevista original, José Carlos mencionou o envolvimento de sete deputados e de um senador em um esquema de fraudes ao Orçamento Geral da União. Não falou no nome de Ibsen Pinheiro, que acabara de deixar a presidência da Câmara e, semanas antes, fora lançado pré-candidato a presidente da República numa festa do PMDB no Recife. Àquela altura, mais de um ano antes do pleito, a candidatura presidencial de Ibsen era uma miragem no cenário político – mas do centro à direita do espectro partidário não havia nenhum nome viável para disputar o pleito presidencial de 1994 com Luiz Inácio Lula da Silva, o favoritíssimo pré-candidato do PT. “Tenho certeza que o calvário de Ibsen começou ali, no momento em que ele deixou de ser uma aventura para começar a aglutinar apoios em torno de si”, disse-me certa vez Nelson Jobim.

Cerca de dois meses depois de iniciadas as investigações parlamentares acerca dos desmandos e da cobrança de propinas na Comissão de Orçamento do Congresso Nacional, o nome de Ibsen Pinheiro emergiu associado à Máfia de Anões que corrompia o erário. O primeiro documento revelado para incriminá-lo era um cheque do ex-deputado Genebaldo Correia (que renunciou ao mandato na esteira das investigações) depositado em sua conta bancária. Horas depois de divulgada a informação dando conta da existência desse cheque, a assessoria de Ibsen Pinheiro passou a afirmar que o cheque era referente a uma transação financeira com uma camionete. O valor do documento bancário era compatível com essa transação e o carro, de fato, fora transferido de um para outro – mas a obviedade do álibi não aplacou a ânsia de apuração jornalística sobre o fato. O segundo documento divulgado para estabelecer um elo entre o ex-presidente da Câmara e a Máfia dos Anões do Orçamento era uma fotografia tirada durante um jantar em uma ilha grega – mostrava Ibsen cercado por cinco dos sete anões do Orçamento. (…)

O cheque de Genebaldo Correia e a foto da Grécia sustentaram uma semana de acusações nos jornais contra o ex-presidente da Câmara dos Deputados. Mesmo desarticulados, mas fiando-se na ausência de outras provas que maculassem ainda mais a biografia de alguém que fora interlocutor privilegiado da República por dois anos, os amigos de Ibsen conquistavam terreno na árdua tarefa de desmentir as acusações. No intestino da CPI do Orçamento, que caminhava para um desfecho melancólico, pois só ia cassar deputados do chamado “baixo clero” parlamentar, buscava-se uma revelação de impacto. Foi nesse ambiente que se perpetrou um dos grandes erros jornalísticos contemporâneos.

Às 20h de uma sexta-feira de novembro de 1993 telefonou-me o assessor parlamentar Waldomiro Diniz. Lotado na Subcomissão de Investigação Bancária da CPI do Orçamento, Waldomiro era o braço direito dos deputados José Dirceu e Aloizio Mercadante naquelas investigações. Hábil, esperto e articulado, forjara-se desde a CPI do Caso PC como uma das boas fontes do submundo político brasiliense. “Tenho uma bomba para você”, disse-me Waldomiro. “Estou indo para a sua redação.” Minutos depois, Waldomiro Diniz entrou na sucursal brasiliense de Veja, onde os trabalhos de encerramento da edição estavam avançados e trabalhávamos em um texto de capa sem maiores novidades ou revelações sobre os trabalhos da CPI. Dali a duas horas, no máximo três horas, a edição de Veja teria de baixar para a gráfica da Editora Abril, em São Paulo.

Waldomiro exibia um sorriso triunfal. “Pegamos Ibsen”, disse-me. Em seguida, exibiu sete boletos de depósitos bancários, já dolarizados por ele, e que, segundo me dizia, provavam a transferência de US$ 1 milhão de uma conta bancária de Ibsen Pinheiro de uma agência da Caixa Econômica para uma agência do Banrisul. “Ele não tem salário para ter tanto dinheiro. Isso é a prova da corrupção”, asseverou Waldomiro. Irresponsável, mas maravilhado com a possibilidade de cravar um furo na edição de Veja do fim de semana seguinte, embarquei na versão e na dolarização. Não chequei as informações. Comuniquei aos editores em São Paulo que estava mudando o tom da reportagem que concluía e passava a ser mais afirmativo contra Ibsen. Liguei para o ex-presidente da Câmara – afinal, ouvir o outro lado é praxe muitas vezes cumprida com burocracia. Ele me negou a história, negou-me os depósitos e os valores, mas eu preferi acreditar nos documentos que tinha em mãos – afinal, registrar o outro lado burocraticamente também é praxe no jornalismo. A nova informação autorizou uma chamada de capa mais enfática contra o ex-deputado – “Até tu, Ibsen?”. A principal revista semanal de informação do País, que ia ficar exposta nas bancas por uma semana, era um libelo acusatório contra o presidente da Câmara dos Deputados que liderara a votação do impeachment ao ex-presidente Fernando Collor de Mello um ano antes.

Escrevi o texto e enviei os documentos bancários por fax para São Paulo. Com a reportagem lida, modificada e aprovada pelos diversos escalões editoriais de Veja, cheguei à minha casa por volta das 2h da madrugada do sábado. Pouco antes das 8h fui acordado por toques insistentes da campainha do apartamento onde morava. Era Silvânia Dal Bosco, colega na redação de Veja. “O Paulo Moreira quer falar com você. Deu um problema grave lá em São Paulo… na edição da matéria do Ibsen”, disse-me Silvânia. “Ele está tentando ligar para cá, para a sua casa, mas só dá ocupado.” O meu filho tinha deixado o telefone fora do gancho. Liguei para Paulo Moreira, então editor-executivo de Veja. Tenso, Paulo disse-me que Adam Sun, chinês implacável que por muitos anos zelou pela qualidade das informações publicadas em Veja na condição de chefe da equipe de checagem da revista, descobrira que a dolarização estava errada. “Lula, essa soma não dá US$ 1 milhão. Dá US$ 1 mil”, gritou-me Adam do outro lado da linha. Eu gelei. “Paulo, tem jeito?”, perguntei. “Não”, cravou-me ele, friamente. “Já rodamos 1 milhão e 200 mil capas. E jogar fora 1 milhão e 200 mil capas é um prejuízo impagável (hoje cerca de R$ 100 mil). Podemos, ainda, mexer no texto dentro da revista – mas isso vai atrasar a remessa para o Rio de Janeiro e para o interior de São Paulo”, advertiu-me ele. “Vê se consegue, em dez minutos, alguém para sustentar em on essa dolarização de US$ 1 milhão”, sugeriu.

Não pensei em Ibsen Pinheiro ou na injustiça que estava ajudando a dar curso com aquela reportagem calçada em uma falsa prova. Pensei em mim, no meu emprego, em como salvar uma reportagem fadada a produzir uma tragédia. Telefonei para o presidente da CPI do PC, o então deputado Benito Gama, e consegui pegá-lo acordado àquela hora. Narrei-lhe o ocorrido. Ele tinha conhecimento da versão acerca dos tais depósitos de US$ 1 milhão. “Não há chance de isso estar errado. É US$ 1 milhão e Ibsen terá de responder por isso”, asseverou Benito. “Deputado, isso é on (ou seja, no jargão jornalístico, eu perguntava se a informação podia ser publicada assinalando-se a sua origem)? Olhe que a reportagem de Veja, que está errada, vai se escudar nesse on seu”, perguntei mais uma vez. “É on. Agora, deixe-me fazer o meu cooper”, tranquilizou-me Benito. Passei a frase por telefone a Paulo Moreira, que mexeu na edição da revista, e a Veja circulou com o libelo acusatório contra Ibsen.

Foi uma tragédia pessoal para Ibsen Pinheiro. Ele não me procurou nos dez dias seguintes. “Não tinha coragem de querer saber o por quê de terem dado curso àquela mentira. E logo um repórter com o qual eu tinha excelente relação”, disse-me anos depois. Eu sabia que a reportagem estava errada, a CPI também. Por ter detectado o erro e por ter trabalhado para corrigi-lo no texto interno da revista, a despeito de não ter salvado a capa, já impressa, o checador Adam Sun ganhou
um prêmio de US$ 1 mil conferido pelo diretor de redação de Veja, Mario Sérgio Conti. Prêmios como aquele, obtidos mesmo sem concursos ou disputas, só eram dados depois que conseguíamos bons furos de reportagem. Fora a primeira vez
que um prêmio como aquele acabara nas mãos de um checador. O texto de Veja repercutiu nos jornais por dois dias, a dolarização incorreta foi protocolarmente corrigida pela CPI na semana seguinte, mas Ibsen fora arrastado definitivamente para o centro das investigações. Seus advogados de defesa contrataram uma auditoria da Trevisan & Associados para esquadrinhar todos os ingressos e todas as saídas de suas contas bancárias no período de cinco anos. Nenhuma movimentação financeira anormal foi detectada, mas a CPI desconheceu tal  auditoria argumentando que não a pedira nem a fiscalizara.

– Houve um momento, no meio de todo aquele furacão, em que eu tomei uma decisão: convenci-me que a melhor coisa que podia fazer por mim seria não morrer. Eu não poderia simplesmente ter um enfarte e morrer; dar um tiro na cabeça ou sucumbir a um câncer, se ele fosse diagnosticado em meu corpo. Tomei a decisão política de não morrer para ver até onde iria tudo aquilo, até onde eu resistiria e como seria o meu restabelecimento pessoal e público.

(…) A confissão desse processo de regresso a um estado de paz interior consigo mesmo foi feita por Ibsen em uma conversa que tivemos, na sala de seu apartamento em Porto Alegre, no ano de 2000. Estávamos ali eu, ele e sua mulher, Laila, companheira dos melhores dias e dos mais torturantes momentos. Olhei em volta, mirei alguns pratos de louça dourada sobre uma cômoda, uma almofada de crochê sobre uma cadeira de balanço, três ou quatro bibelôs dentro de uma cristaleira espartanamente arrumada. “Meu Deus”, pensei em silêncio. “Este apartamento está decorado à semelhança da casa de meus avós, de meus pais. Um dia eu fui capaz de escrever que esse homem, que essa mulher tinham se tornado milionários – e olha aqui: são plácidos avós, marcados pela vida, mas ainda sólidos.” Não revelei, na hora, aquela sensação que me provocava desconforto, mas passei a me perguntar como poderia fazer um gesto que tentasse reparar as injustiças que, involuntariamente, mas cúmplice, ajudei a perpetrar. Meu maior patrimônio é a credibilidade de que gozo como jornalista profissional e, de alguns anos para cá, como consultor de comunicação. Escrever este relato, absolutamente fiel a tudo o que vivi, foi a melhor maneira que encontrei de repor a verdade – a verdade que testemunhei.